quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Excerto de relatório de estágio: Novembro - parte II

As crianças sempre sabem tudo. Sabiam, por exemplo, da intromissão por vezes ruidosa da Princesa Cíntia e muito se incomodavam, não sem razão, com ela. Demorei demais, mesmo lendo coisas de Psicanálise, para saber que (sobretudo) as meninas dividirem (quando não disputarem mesmo) o amor do pai com a mãe já era o máximo a que podiam suportar sem grandes alardes, mas dividi-lo com uma terceira era demais!
Pois justamente após o dia 10 de Novembro, logo após, a Bia me veio perguntar pela Princesa Cíntia colorindo a melodia da voz com a costumeira truculência do corpo, com alguma malícia já sensual e com espessas tintas de ciúme. Eu respondi com uma pergunta:
- Porque você acha que eu estou de preto? Estou de luto: ela morreu.
Com riso maroto, a Bia me pediu o telefone dela.
- Mas ela está morta!
- Mas eu quero o teleone dela.
- Mas você vai ligar e ninguém vai atender!
- Mas eu quero ligar, mesmo asim.
Não queria. Depois de conseguir o exato número do telefone da Princesa Cíntia (que aliás "agora que voltou tudo ao normal, talvez consiga ser menos Rainha e um pouco mais real"), apenas com a troca de um 1 por um 0, a Bia foi mostrar o número para a Diane, como acusasse minha traição, dizendo que ela era a minha namorada. Agora, sim, que finalmente a terceira havia falecido, a Bia se sentia no direito de revelar meus adultérios. Obs: ela, que sempre pareceu tão sem limites, neste caso, por exemplo, conseguiu esperar silenciosamente por meses - muitos de nós não conseguem esperar.
A Diane estava sentada, rendida por um longo cansaço. Levantou-se. Atravessou a sala toda com seus passos altaneiros e perguntou pra mim, calmamente, apesar de nitidamente ofendida, quem é esta tal de Cíntia? é sua namorada?
Jamais saberei, a Diane saberá?, quantos dicionários correram pelos meus lábios, quantas mil e uma noites, antes que eu pudesse dar uma resposta definitiva. Respondi que não era ninguém, que era ficção. Em seguida, a Diane quis esconder o ciúme, disse que perguntava porque sua chefe da outra escola se chamava Cíntia e que temia precisar ligar pra ela por alguma razão. Eu deixei a Princesa Cíntia escapar dos seus reinados e neguei sua existência. Não podia falar da sua morte - pra falar de morte, é preciso falar de vida...
Homem não presta.

(Gu)

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