quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Lugar ao sol

No canto, à sombra,
respira
um bebê.
A mulher, linda,
se deixa
estar
(a boca entreaberta)
a dormir, linda.
Em pé, diante da
janela banhada por um sol de meia-tarde,
o retrato de meu avô com meu pai
aquece,
minha certeza sob os olhos do bebê
que dorme.

(biel)

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Pipoca

Ao som da corneta, os soldados que quase não dormem despertam. E que maneira de se começar uma estória senão pelo raiar do dia, ou da corneta, ou do galo etc. Como era hábito desse pelotão tão especial, tudo já estava pré-pronto. Os fuzis reluziam pendurados no arsenal esperando por seus respctivos donos. Não havia confusão na hora de armar-se, pois cada fuzil tinha o encaixe perfeito para o dedo do atirador, além de ter as medidas perfeitas para apoiar sua parte posterior ao ombro amigo do soldado. As roupas todas dobradas e organizadas nos armários. O café da manhã, pão e água quente com dois grãos de café, é de responsabilidade dos soldados mais rápidos desse pelotão especial. Eles sempre acabam de se arrumar um pouco antes do resto do pelotão e preparam o café. O resto, outros cinco soldados, levam mais dois minutos. As fardas acinzentadas sem um vinco, sem uma dobra de amassado. Os cintos alinhados aos botões da farda. Os coturnos reluzentes e engraxados, sem uma falha apesar de tantos respingos de sangue, e uns tantos de saliva por parte da multidão.
Nas paredes da cabana, nenhuma foto de namoradas abandonadas em favor da nação. Nenhuma carta de mães desesperadas em baixo do colchão. Nem ao menos fotos pornográficas ou algo que indicasse uma presença feminina, além da morte enfrentada todos os dias.
Café tomado, a porta da cabana sangrava diretamente para a beira da arena. Afinal, aquele pelotão tinha apenas uma razão de existir. Ao atravessarem esse portal o silêncio é rompido abruptamente: a multidão nas arquibancadas delira de fervor. grita, sanguinolenta, palavras de apoio aos soldados e de desprezo aos inimigos. Alguns, no afã da sede, babam. O general já os espera em posição. General que se preza, perfila com os soldados no front. Um a um, os soldados tomam posição diante do muro crivado por projéteis não tão certeiros ou pelos que não desistiram de suas trajetórias apesar dos obstáculos.
O caminho ao centro da arena é sem tropeços, ritmado e calmo. Os gritos da multidão não abalam esses homens com nervos de gelo. Até o suor que se presumiria abundante com o sol escaldante naquela manhã, sabe a gelo. Um a um, perfilam. O general como primeiro homem à direita. os condenados já estavam presentes. Quando o último homem do pelotão toma posição a plateia ensandecida se cala. Uma nuvem cobre o sol e oferece algum refresco. Uma brisa leve gela os corações, mesmo o do general, mas não os dos soldados.
Os fuzis trazidos até ali apoiados aos ombros tão amigos são apresentados, uma reverência sonora soa na multidão. Algo como um "ohhhh" prolongado. À batida dos coturnos contra o chão de terra batida as pernas da multidão amolecem; o general estremece. As armas apresentadas esperam a ordem para possuírem os soldados. O general, com medo de perceberem sua perceptível alteração na tonalidade da voz, dá a ordem com o olhar. Os fuzis se engatilham. Buscam a ajuda do ombro amigo. O silêncio ganha peso na última movimentação do pelotão. Os fuzis desamparados desabam ao chão seguidos por seus ombros tão amigos após os uníssonos disparos. O do general é o primeiro a tocar o solo, seu ombro ainda o faz antes do fuzil do soldado mais rápido. A multidão, com calma, deixa a arena. O sangue desejado lá está, empoçando. Mas ainda assim os coturnos mantêm-se intactos.


(biel)

Imortalidade

A ideia de ficar para a história me obceca.
Na ânsia de ser eterno
esqueci-me de lembrar
daqueles que constroem os heróis
daqueles que não são lembrados
a não ser por aqueles que pra história ficaram:
o infinito mora nos esquecidos.

(biel)

terça-feira, 13 de julho de 2010

Pensamentos inspirados no casamento entre Shu e Ana

Não seria preciso lembrar – a nem um daqueles que se dispuseram a pensar um pouco e um pouco sem clemência sobre a própria vida – a pobreza, a um só tempo, estética, ética e política, inerente à idéia de casamento, tal qual a conhecemos vida adentro.

Não seria preciso lembrar, por exemplo, no que tange à estética, certa cafonice rastaqüera daqueles sonhos idos e atávicos de um tal vestido branco, puro, casto.

Não seria preciso lembrar também, no que tange à ética, a tristeza de um certo modo pastiche de se posicionar na vida, repetindo pari passu os mesmos enganos, as mesmas amarguras, as mesmas desilusões das gerações anteriores.

Por fim, não seria preciso lembrar – e qualquer velho marxista mesmo o faria há séculos –, no que tange à política, a que forças, a que ideologias, a que classes, a quais posições no jogo aderimos quando optamos pelo casamento.


Pois bem, atravessados mais de vinte anos de vida, sabemos de cor os protocolos do casamento. Sem espanto, somos convidados para mais um. Cientes dos estranhos poderes que o cercam, que o movimentam, separamos qualquer coisa de melhor em nós (tempo, dinheiro, carinho, mão-de-obra, presente, humor, entre outras miudezas) àqueles a quem queremos bem, a quem amamos, àqueles que também, infalivelmente, ingressarão, de livre e espontânea vontade, em mais uma instituição. Separamos e rumamos ao casamento: com algum cansaço, mas também com algum contentamento, é claro, em saber ou supor contentes estes que amamos.


Assim fui eu ao casamento entre Shu e Ana. Antes de ir, comecemos pelo começo, conversava com Biel, irmão do noivo, e indaguei, curioso, se a cerimônia seria religiosa ou civil. Ao que me respondeu Biel não ser religiosa nem civil. Desde então, certa inquietação, improvável em qualquer casamento, começou a tomar conta de mim.

Bem, agora, sim, fui ao casamento. Por não ser religiosa nem civil, a cerimônia não aconteceria nem em igrejas nem em cartórios. Aconteceria em um sítio. Já fui, nestes mais de vinte anos, a casamentos em chácaras, mas nunca com razões suficientemente convincentes para que acontecessem em uma chácara – poderiam, estes outros casamentos, terem sido realizados em qualquer outro lugar de confinamento, como as igrejas e os cartórios, pois as instâncias de autoridade lá estavam presentes. Coisa completamente distinta deste casamento que ora narro (começo a temer que com aquela pobreza que eu denunciara), pois este foi um casamento na terra, da terra, para a terra. Diria um grande homem: inenarrável. Terra, Gaia. Gaio casamento, alegre casamento, desde aí. Terra, não como re-ligação a uma natureza perdida, menos ainda como um lar, mas como superfície de passagem, como paisagem de diversos modos de vidas, como terreno de inscrição de possíveis danças, como eterno retorno, talvez.

Casamento este que realizou um rito de passagem, mesmo, e não um protocolo. Os protocolos prestam contas à sociedade e, mais que tudo, aos governos destas sociedades e, mais ainda que tudo, aos cálculos destes governos destas sociedades sobre aquilo que guardaríamos de mais íntimo, de mais inconfessável, de mais profundamente nosso. Os ritos de passagem não prestam contas sobre intimidades, pelo contrário: absoluta e rigorosamente impessoais, inscrevem-se em movimentos preexistentes, até mesmo imemoriais. A partir dos protocolos, impõem a nós ou nos incitam a uma certa identidade (por exemplo, a de casado) e nos fixam em certa posição numérica (os protocolos sempre têm números). Nos ritos de passagem, ao contrário, perdemos nosso rosto e adquirimos o de uma divindade, o de uma energia, o de uma atmosfera. Os protocolos nos condenam aos limites de certa humanidade, aos limites da forma-homem; os ritos nos obrigam a nos exceder. Assim como os espaços de confinamento nos prendem e nos obrigam a alguns gestos e vetam a possibilidade de criação, enquanto a terra nos convida à passagem, à desterritorialização.

Este casamento prescindiu, como já disse, da triste personagem pastoral, seja de um padre ou de quem for. Triste personagem destinada a alimentar paixões tristes, como a resignação, a má-consciência, a culpa. Triste personagem que exige promessas e que, ela mesma, promete, em nome de algo transcendente (pode ser Deus, pode ser o Estado), uma redenção final. Triste personagem que, também ela, inibe a criação, recomendando uma vida como cópia o mais próxima possível de alguns exemplos e que encerra, em si mesma, um exemplo a ser seguido. Triste personagem que parece muito pontuar o fim de uma vida e encarcerar aqueles que por esta figuram passam em uma espécie de morte em vida (daí, quem sabe?, aquele hábito risível de uma “despedida de solteiro”, como um último desejo antes de morrer ou como última celebração da vida).

O que este casamento consumou, diametralmente oposto, foi uma primeira celebração da vida, a qual nos convocou a todos, já no fim da cerimônia, o Shu. E pôde celebrar, com tanto vigor, a vida, porque os noivos, durante a década de namoro, puderam inventar novos modos de se relacionar com as outras pessoas, outros modos de se afetar e ser afetados por elas, outros modos de persistirem apaixonados (imagino toda a sorte de paixões) uns pelos outros, resistindo às intempéries dos modos de vida que circulam entre nós, pós-modernos, sem ceder às famosas desculpas que nós, sonsos, forjamos para nos desculpar por uma vida pobre.

Os amigos dos noivos ofereceram o oposto daquilo que aquela triste personagem pastoral poderia oferecer, o que seja: separar os acontecimentos e os julgar como certos ou errados, como bem ou mal, como pios ou ímpios, como legais ou ilegais, como justos ou injustos. Os amigos e familiares dos noivos se recusaram a uma tal abordagem dos acontecimentos desta década de namoro e do próprio acontecimento do casamento. Os amigos, os familiares e também os noivos criaram. Criaram um casamento outro, um outro modo de se casar, sem possibilidade de duplicação. Não estou entendendo, aqui, criação como precisamente qualquer coisa que nunca se tenha visto sob a face da Terra. Nem, muito menos, como manifestação da individualidade e da originalidade das pessoas – longe de mim! Estou entendendo criação, à laia moderna, como tudo aquilo que barra a inércia, que interrompe o fluxo, que embaralha o ordinário, que desafia o previsível: um susto, um asma, um domingo insólito?

O que me faz pensar em um casamento ético, no primeiro casamento ético a que pude assistir. Penso que esta seja, em última instância, a oposição entre a moral e a ética: enquanto a moral tem que ver com os deveres e as transcendências, a ética tem que ver com as potências e os afetos. A moral é normalizadora, a ética é criativa. Este foi o primeiro casamento em que os acontecimentos não contaram por que são certos ou errados, por que devemos ou não cumpri-los, mas por que implicam em tal ou qual modo de vida, por que criam ou não outros modos.

Pode-se pensar todo este casamento em termos de contos de fada. Mas não me agrada muito. Nem tendo em vista os mais tolos da Walt Disney nem tendo em vista os mais ferozes dos irmãos Grimm. Porque os contos de fada se situam num passado imemorial. E este casamento, apesar do tom de ritual (que nos faz situar em tempo imemorial também ou em um não-tempo, não sei), foi realizado plenamente em 2010 e conta com dois noivos paulistanos, é importante não esquecer. No meu entendimento, este casamento nada tem de passadista, de romântico.

E foi justamente lá, justamente numa forma tão apodrecida, tão cristalizada, tão aviltada, tão arruinada, justamente num casamento, justamente onde só poderíamos esperar pobreza, que surpreendemos alguma volúpia criativa, que surpreendemos a vida como obra de arte. Uma vida cuidadosamente ensaiada, cujo dia de décimo ano de namoro pode coincidir com o do casamento, apesar de ainda fresca e desmedida. Como gosto de pensar, uma vida milimetricamente desmedida. Uma vida também improvisada, com espaços para lágrimas, silêncios e omissões ainda mais belos que os ensaios, mas que não poderiam emergir sem os ensaios. Uma vida nada hollywood, nada espetacularizada, mas na qual cabem a expansão, a dilatação. Ainda.


Casamento exuberante, não-romântico, que nos deu a todos um presente ambíguo: antes de mais nada, parece-me, deu-nos a possibilidade, que praticamente não havia mais, de nos casar também. Em compensação, depois deste, nossos casamentos não poderão mais ser como foram o de nossos pais, não poderão ser protocolais. Do mesmo modo que não poderão ser como foi o do Shu e da Ana, insisto: não há possibilidade cópia, duplicação, normalização. Não para nós. Não mais.

(Gu)

sábado, 10 de julho de 2010

Ordem e progresso

Chegara impaciente da audiência em que injustamente perdeu a causa, apenas por entrar em litígio contra alguém de família importante na insignificante cidadezinha, acreditava. Apressara-se em alcançar a arruinada rodoviária, para pegar o ônibus das 13hs – ainda cumpriria outra audiência à tarde em São Paulo. Chegara às 12h55m, comprara a passagem.
Às 13h15, o ônibus ainda não estacionara. Os minutos arrastavam-se e, consigo próprios, suores do gordo e preocupado advogado.
Somente às 13h45m, o ônibus chegou. Enfileiraram-se os passageiros.
Ele se dirigiu à sua poltrona, número vinte. Lá já estava sentado um jovem, ouvindo seu I pod. O advogado reclamou seu lugar. O jovem insolente, após certo esforço do advogado em se fazer ouvir, respondeu apenas com um gesto obsceno.
O advogado foi ter com o motorista, que adentrou em seu ônibus indignado com essa juventude. O jovem, para não ser transtornado também nos próximos funks, tratou de se encaminhar à poltrona comprada, número oito.
Lá estava sentado um velho árabe, que não sabia falar nem ler português e que adquirira a passagem com a ajuda de seu neto brasileiro. Depois de muito custo, e apenas por vulnerabilidade, não por entendimento, o árabe mudou-se para a poltrona cinco.
Lá se sentava uma moça, que não passava perto de poltrona par, porque dava azar. O velho árabe não se importaria em sentar-se em qualquer outra poltrona, porém o quiprocó se fazia tamanho que o motorista fez questão de que tudo findasse em ordem. Alguns lúcidos argumentos de um cientista convenceram provisoriamente a moça de sua possível insensatez.
A moça mudou-se, curiosamente, para a poltrona seis, do cientista, que lá estava, simplesmente, porque sua poltrona já tinha sido ocupada por uma senhora e porque preferira não incomodá-la.
A senhora lá estava, porque sempre se sentava na poltrona dez. Como tudo, na vida, tem uma primeira vez, dizem, ela mudou-se para a poltrona dezessete. A jovem que ocupava este lugar, lá estava apenas porque se confundira e porque queria se aquecer ao sol, mas prontamente aceitou migrar para a poltrona ao lado. Ainda esta poltrona havia sido comprada pela senhora, pois era sempre acompanhada pelo marido, que morrera há doze anos, mas que haveria de apreciar ter seu lugar ao lado da inseparável e amada esposa.
Esta jovem foi, então, para a poltrona treze, ao sol enfim, onde se sentava um dos integrantes da dupla sertaneja da cidade. Foi difícil para todos desalojá-los, ambos, dos lugares por eles escolhidos, mas fazer o quê? Mazelas da justiça...
Seus corpos fortes foram agraciar as poltronas onze e doze. Justamente onde se sentava sua fã número 1, fundadora do primeiro fã-clube, com seu poodlezinho devidamente tosado e vestido com uma camisa oficial da dupla e com lacinhos frágeis. Nem foi preciso pedir que ela se mudasse; fosse preciso, talvez falhassem suas vozes poderosas. Ela e seu cãozinho, que secretamente temiam tal falha, rápido foram para as poltronas três e quatro.
Lá estava um peão esparramado por ambas poltronas. Comprara duas, para que não fosse incomodado por nenhum outro passageiro. Foi incomodado, porque não comprara precisamente aquelas duas. Ele e suas botas imponentes trotaram, pois, para as poltronas quinze e dezesseis.
Na poltrona dezesseis, sentava-se a bela loura das curvas estonteantes e de decote generoso. O peão mal se importou em que ela se sentasse lá. A loura também se mostrou agradada com a presença do peão, inclinando-se para ajeitar o cinto de segurança dele. O motorista, mais uma vez, não gostou da história, já que a moça só poderia estar em poltrona errada. Ambos fizeram pouco caso. Até que o marido halterofilista desta loura saiu do banheiro, avistou o assanhamento e deu uma surra no peão como na esposa.
Quando tinha ido comprar passagem, o halterofilista já não encontrara duas passagens juntas: portanto, marido e esposa desavergonhada sentaram-se em lugares separados. Estavam em posse das passagens sete, ao lado do jovem insolente, e nove, ao lado do cientista. O halterofilista ponderou prudentemente que era melhor ele se sentar ao lado do jovem insolente e a mulher, ao lado do hábil cientista.
Na poltrona sete, sentava-se uma discreta mãe com um filho de colo que não parava de vomitar. Por esta boa razão, não pretendia ela mudar de lugar. O motorista, entretanto, não os deixou escapar, averiguou suas passagens. Já esquecido do atraso que se fazia notável, fez questão de chamar alguém da limpeza e efetuar a mudança. Mãe e filho mudaram-se para a poltrona dezenove, onde o menino vomitaria no ordeiro e justo advogado.
Na poltrona nove, estava um maluco varrido que pedira a passagem quatorze, porque pensava poder garimpar quartzo, otimizando o tempo da viagem. Quando do convencimento árduo de que não estava na poltrona que tanto pedira, dirigiu-se ávido à sua poltrona de direito.
Lá se sentava, entretanto, para nosso pasmo, outro passageiro com a poltrona catorze. O aturdido motorista mandou chamar a vendedora. Ela estava inflexivelmente certa de que catorze e quatorze eram dois números distintos, pois eram duas palavras distintas. Muito foi o esforço filológico do motorista em elucidar que não se tratava de duas palavras distintas mas de variações de uma só palavra. A vendedora não se convenceu, decepcionou-se profundamente com os ônibus de sua empresa, que julgara tão séria antes, e decidiu redigir uma petição ao dono, exigindo uma poltrona para o número catorze e outra, para o número quatorze.
O motorista, promovendo um debate democrático e aberto com seus passageiros, acabou sentenciando que o maluco se sentasse na poltrona catorze e que o outro, na poltrona nove.
Para desilusão de todos que, agora, esperavam iniciar viagem, finalmente, chegou o atrasado passageiro da poltrona nove. O motorista foi investigar as passagens da poltrona dois e da um, as únicas até então sem problemas. O elegante e taciturno passageiro da poltrona dois sentava-se na poltrona correta, e reputava a perda de tanto tempo para começar uma viagem assim como, apesar de ocupar a poltrona correta e apesar de manter a paciência, a suspeita de ilegitimidade um abuso exorbitante, mas preferiu nada falar, para não perder ainda mais tempo.
O passageiro da poltrona um, descobriu-se logo, era, na verdade, o motorista, que bebera um pouco mais, no almoço, e que pedira a seu primo dirigir por ele. O primo, aquele que parecia tanto o motorista, enterrou a mão no bolso e encontrou a passagem número um. Porém, gentilmente, cedeu-a ao passageiro atrasado da poltrona nove e foi buscar passagem para o próximo ônibus.
Gentilezas, às vezes, poupam vidas, pois o ônibus tropeçou em um dos inumeráveis buracos da estradinha e desabou com todos seus passageiros, deslocando-os, pela última vez, de seus lugares corretos e justos.

(Gu)

terça-feira, 22 de junho de 2010

ela

Joana D'arc no deserto.
um oásis?
montanha.


(biel)

domingo, 13 de junho de 2010

caminhando

as curvas lânguidas
manchadas de esquinas
aguardam
na parada
meu destino

que a língua de asfalto
me traga
o horizonte

(biel)

sexta-feira, 14 de maio de 2010

a cidade e a gente

a cidade proporciona voltas
retornos

nunca a abandonamos de fato

ela descansa
adormece
se entorpece
anestesia nossos nervos às outras cidades
vestindo-as de calma aos nossos olhos

mas a cidade está em nós
e nós sabemos.

(biel)

retificação

Eu, biel, sem consultar meu parceiro de blog, gu/tavão, mudei o domínio deste blog e deixei perdida uma visitante noturna.
peço a todos mil desculpas pelo incômodo e torço apra que nossa visitante regresse.


Perdão,


biel.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

a cidade

a cidade rói a gente
como rói à roupa o rei
o rei rói e o rato reina
roendo a roupa
a cidade vai roendo
vai roendo e alucinando
solta-se e escorrega
deslizante e de leve
vai roendo o que é gente
vai sobrando só a roupa
o rei agora é rato
a ser roído pela roupa

(biel)

quinta-feira, 1 de abril de 2010

sentidos

na brisa de cada ano tatuei teu nome
e na brisa ficou o teu cheiro
ou entranhou-se em mim
que já não sei se sinto ou se penso sentir

o halo de calor se revela da mesma maneira,
comprido,
e uma lágrima me faz lebrar.

(biel)

entrelugar

à metade.
suspendeu o momento de euforia.
os olhos, agônicos agora
não mais vibram,

esperam. como troféus,
expostos aos olhares,
que o dia aconteça.

(biel)

ação, reação e suspensão

O ato suspenso
a linha de chegada o aguarda
os olhos suspensos
à parede eternizam a agonia

apesar de nem sinal dos outros
competidores
ou talvez até por isso
decidiu-se

o público em palpitação
dedos cruzados de esperança
ao momento exato da parada

viu contorcer de dor
a mulher que estava ao público
na inteireza de sua vida para ali dedicada

à metade do dia
à metade da vida
à metade não aceita


(biel)

quarta-feira, 31 de março de 2010

ação e reação

como o velocista que desiste de cruzar a linha de chegada
pendurando os olhos do público na parede
exibindo orgulhosamente da agonia alheia
o dia não aconteceu

(biel)

sábado, 20 de março de 2010

à mesa

Não queria ter prazo de validade
quero ser não perecível
um grão de arroz
num saco de arroz
misturar-me ao feijão
sentir o calor de seu caldo
não ter de virar arroz-feijão dos vermes
ela?
ela não!
pois será sempre sobremesa.

(biel)

quinta-feira, 4 de março de 2010

construção

que tua língua derreta
agora
na minha
porque atrás do horizonte espreita
apenas
um terreno baldio
grávido de construções que faremos daqui

(biel)

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

(...)

porque a vida é grande
e o mundo, pesado
trago comigo algumas verdades
mas somente uma certeza:
a vida.

(biel)

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Capicilin gerindo conflitos

Shampoo disciplinante

Sem sal

Reduz o volume,
Relaxa
e
suaviza as ondas,
Assenta fios arrepiados, rebeldes e quebradiços.

(Pau no Gu)

sábado, 30 de janeiro de 2010

terremoto

os olhos em outra direção.
cada pedaço da terra explode
mas o chão, este simplesmente desaparece.

a viagem ao centro da terra tem início

a vertigem inverte-se
olho pra cima...

na beira do abismo ninguém quer cair comigo

(biel)

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

UMA ESTÓRIA MASCULINA

Um homem na estrada caminha o seu caminho, não olha pra trás e pensa que é grande a sua jornada. Ou pior, pensa que é o escolhido para fazer o que está indo fazer. Não sabe que o que realmente acontece é que ele sempre tem algo a perder. Só é grande o homem que não tem nada a perder. Onde não mora mais a fé. Onde não mora mais seus amados. Ele pode realmente tentar, mas nunca poderá ser assim tão grande quanto ele pensa que é. A estrada não lhe é assim tão boa que lhe tire tudo para que ele seja grande.
Na estrada ele sabe, traz a certeza de ser o único. Caminha lentamente, calmamente. O olhar erguido, a cabeça meio baixa, um gato que prepara o ataque ao rato. Em cada parada da estrada arranca suspiros. As moças lhe desejam sorte sonhando em ser o motivo da busca. Mandam-lhe beijos aéreos que ele rejeita por ter consigo a lembrança da amada deixada para trás para cumprir a missão. Ou seria uma Missão? Se em nome de deus ele corresse. Ou lembrasse Forest Gump. Se...
E em cada parada cada homem com cada carro com cada esposa com cada filho com cada brincadeira em cada canto era lembrado desejado insultado comentado criticado invejado. Caminhar ereto era uma afronta ao destino. Uma afronta a quem pensasse em lhe impedir a passagem. Ele vinha seguro. Tão seguro. Seguro como se não tivesse o que perder. Jamais lhe ocorreu que ele poderia ser algo que os outros pudessem perder. Havia tanta fé naquela jornada. Ainda que o motivo fosse nobre, não era muito original. Tanta comoção. Ele não percebeu que se tornara num ídolo. Quase uma lenda. Algumas estórias começaram a surgir pela sua rota. Estórias que não se sabe como começaram, mas que caminhavam mais rápido que o nosso viajante. Antecipavam-lhe a chegada. E em pouco tempo, a inveja foi tomando outras formas, os desejos foram ficando mais explícitos. Mulheres nuas invadiam a tenda na qual acampava implorando para serem possuídas. Os homens dos povoados trancafiavam filhas e esposas até que o caminhante chegasse à próxima cidade.
Ouve inclusive um incidente de desafio a duelo. Tendo, à luz do dia, a mulher de um homem já estabilizado, com duas filhas pequenas. Um homem inteiramente feliz em seu casamento um homem que resistiu às tentações oferecidas pela secretária em seu escritório. Resistiu às orgias para as quais fora convidado durante os primeiros dois anos de matrimônio. Um homem que amava. Estando este homem em seu escritório, do alto do prédio podia ver a estrada. A multidão que acompanhava o nosso viajante sujou-lhe o horizonte. O homem que amava já tinha conhecimento do viajante. As estórias eram tão irreais que ele chegou a duvidar da veracidade da caminhada, mas lá estava o nosso caminhante que não podemos chamar de nobre, porém m adjetivo é necessário. Que seja corajoso, lá estava nosso caminhante corajoso. O cortejo aproximava-se va-ga-ro-sa-men-te. O homem que amava havia acabado de almoçar e entrava num estado levemente sonolento. O corajoso viajante parecia ter acabado também de fazer sua refeição, pois caminhou ainda por mais uma hora sem parar. Quando a procissão se aproximou do prédio, chegando à fonte da cidade que ficava somente a algumas quadras do prédio, o homem que amava pode distinguir sua esposa dentre os acompanhantes do caminhante. Não acreditava que sua esposa, mulher tão centrada, pudesse ter sido seduzida por essa sensação que tomava conta de todo o estado desde que começara a caminhada. Porém lá estava ela. Tomou seu direito como chefe, cancelou uma ligação que teria de fazer e foi juntar-se à esposa para ver de perto o viajante. Estava somente curioso para lhe conhecer o rosto. Os boatos eram tantos que ele já não poderia saber que imagem formar em sua mente. O viajante havia parado na fonte para um gole d’água e um descanso de quinze minutos. Ao alcançar a fonte, o viajante logo reconheceu o viajante pelo fato deste estar levemente afastado da multidão, entretanto era o único para o qual todos olhavam. Moreno, alto, forte, olhos escuros, cabelo escuro. Uma figura que lembrava alguém, talvez algum ator de filmes estadunidenses. Então se voltou mais uma vez à multidão. Encontrou os olhos da esposa brilhantes, a pele clara ao sol parecia arder. Sorriu por meio segundo. Percebeu que os olhos dela estavam ali e não se moviam. De encontro ao viajante. A fúria lhe subiu. Postou-se entre o olhar da esposa e o caminhante. Ela enrubesceu. Sem pensar, dirigiu-se ao viajante que pouco sabia o que causara. Desafiou para um duelo. Quis resolver tudo no braço. Sabia que não teria a menor chance. Lançaria o rosto de encontro àquelas mãos enormes se fosse necessário para causar algum dano ao viajante. A mulher interveio. Pediu-lhe para que esquecesse. Implorou com sinceridade em nome do amor que ele lhe tinha e que ela sempre nutriu por ele também. Ela nunca mentira o dizer que o amava. Ele parou. Olhou-a com calma. Enxergou-lhe o arrependimento. Perdoou-lhe ao custo de um fígado que lhe era bicado por uma ave a cada vez que parecia ter esquecido o assunto.
O homem continuou sua viagem.
O homem que amava iniciou a rotina de suicídios diários.
Esquecido já do acontecimento, com suas atenções todas voltadas apenas para o seu objetivo, o homem caminha. Com coragem. Havia já escapado de duas tentativas de homicídio. Uma delas encontrou sucesso em assassinar, mas errou o alvo a ser morto. Como havia muitos seguidores, muitos deles usavam barracas iguais à do homem que caminhava para com ele acampar. Em uma noite, um homem errou a barraca e esfaqueou um jovem rapaz de 16 anos que se deixou levar pelos ideais do caminhante. Com tudo isso, só fazia aumentar a fama e a nobreza da missão. Gostava disso. Gostava de se sentir o centro, mas não era prepotente. Uma figura simpática, carismática. Movera uma multidão sem dizer uma palavra. Porém não os desencoraja. Mesmo sendo exclusivamente sua a caminhada. Não perdera uma noite de sono pelo rapaz assassinado à barraca ao lado. Não mandara sequer condolências à família do rapaz que julgava que o filho estivesse na escola.as dúvidas ainda não lhe ocorriam. As dúvidas são fatais.
Duvidando de si, um homem se apresentou ao caminhante. Era o homem triste. O homem triste tinha perdido tudo o que tinha. Os homens que perdem tudo têm uma chance de se encontrar. Mas não este. Este enterrara-se. Respirava por hábito. Fazia hora extra no mundo. A filha e a esposa mortas num acidente automobilístico arrasaram sua vida. Cheirava a álcool. Os olhos amarelecidos e avermelhados ao fundo. Confundia-se com restos da cidade. Era uma grande cidade, uma verdadeira megalópole. Vira a comoção causada pela passagem do viajante em outras cidades pelos telejornais nos bares em que costumava adormecer. Não sabia bem o que acontecia, mas excitara-se com a novidade. Um velho com um novo bicho de estimação ou uma nova planta ou um novo programa de pesca.
Depois de duas ou três quedas pelo caminho, divisou uma mancha escura. Caminhou em direção a ela. Logo começou a ouvir um chiado. Ainda não sabia o que estava acontecendo nem o que estava exatamente fazendo. Mas caminhava seguro de onde queria ir. O chiado tornou-se em vozes. A mancha, em multidão. Distinguiu pelo afastamento um moço moreno. Sorria pra si mesmo. Invejou-o como quase todos que o seguiam. Chegou-se perto. O homem moreno ensaiou um gesto de repulsa, mas conteve-se a apenas retorceu o rosto por conta do cheiro do homem triste. O homem triste perguntou-lhe porque caminhava. O viajante respondeu. O homem triste ponderou como era ponderada sua idade, nem lá, nem cá: meia idade. Retomou lembranças que não quiseram ouvir quando ele entrara em decadência. Lembrou-se da angústia. Quis voar para o bar. Sabia que seria um vôo com turbulências, algumas escoriações e hematomas. Pensou. Ressentiu-se da vida. Olhou mais uma vez o viajante moreno e bonito. Lembrou-se de si mesmo. Deixou-se ficar ali. A multidão partiu seguindo o viajante. Sentou-se onde esteve o viajante. Sentiu vontade de chorar. Chorou. Levantou-se. A embriaguez passara. Caçou no bolso as chaves do carro. Lembrou-se que o motorista que tirou-lhe a vida estava embriagado ao volante. Perdera as contas de quantas vezes dirigiu embriagado antes disso acontecer. Sentiu vontade de chorar. Chorou. Voltou pra casa. Banhou-se.
Viajava o nosso caminhante. Determinado. Embora não muito perseverante. Gostava de conversar com os jovens cheios de ideologias que lhe perseguiam. Encontrava furos em todas as ideologias. Pontos negativos. Era inteligente. Mas só o suficiente para contestar, nunca para defender. Afinal, defender é o mais difícil, por isso dizemos que a melhor defesa é o ataque. Sua próxima parada foi num vilarejo tranqüilo. Ali era grande a solidariedade do povo que vivia com pouco. Comeu de graça. Banqueteou-se, na verdade. Todos queriam trazer o que de melhor havia em suas casas para o afamado viajante. Metade da multidão parara na entrada da cidade num pequeno boteco que servia almoço. Alguns passos adiante o viajante foi abordado pelos moradores. Após o banquete, enquanto ainda saboreava a sobremesa, sem saber que estava condenando quatro crianças a ficarem sem sobremesa por toda a semana, viu sentar-se um jovem à mesa armada pra ele. Estranhou pois todos permaneceram de pé enquanto ele comia. Antes que ele pudesse perguntar-lhe o nome, o jovem disparou: o senhor caminha para o vazio. Não deveria caminhar apenas para provar ao mundo. Esqueceu-se de si? Afinal, de que lhe vale a cruzada se ela nunca será também sua. Já houve mortes. Sua eloqüência é invejável, porém vazia. Não posso acreditar que de onde você vem possam ser todos assim. Se forem, me avise para que eu saiba qual será a próxima cidade a ser varrida do mapa nos próximos dois anos. E o senhor... Não pode completar a frase, a indigestão que o homem que falava causou teve como conseqüência um cruzado de direita que o fez engolir um dos dentes e ainda lhe rendeu um nariz quebrado. O homem que falava apenas esperava a contestação que vira nos noticiários. Queria acreditar naquele seu herói, mas era preciso palavras para o tornar mais que humano. Mais que um homem. O homem que falava obteve sua resposta. Afinal, a melhor defesa do viajante foi o ataque. Levantou-se, saiu da cidade o mais rápido que pode.
Ninguém havia refletido sobre o que aconteceria depois da missão cumprida. Talvez já tivessem cogitado um retorno glorioso. Refazendo o percurso inversamente ao início. Recolhendo as palavras que todos lhe diriam desejando-lhe toda sorte em sua próxima caminhada. A chegada em casa. O encontro com a mulher. O beijo longo de fim-de-filme. Inclusive ele, o caminhante, já havia pensado nisso. Nunca lhe ocorrera a possibilidade de falhar em sua missão. Ou que qualquer coisa pudesse ocorrer-lhe. Nunca até agora. Caso não conseguisse completar a sua jornada sua mulher se decepcionaria. Provavelmente o acharia um fraco. Caminhar tanto para nada. O abandonaria. Encontraria com alguém na mesma estrada que ele caminhava agora. Ela seria capaz? Olhar como me olhou aquela moça de pele clara ardendo ao sol para outro homem? Pensou o homem que amava e sentiu o sangue gelar. O chão parecia sugar-lhe as forças, os joelhos começaram a dobrar-se involuntariamente. Precisava falar com ela. Estava perdendo a sanidade. Avistou um telefone público do outro lado da estrada. Não teve dúvidas. Precisava telefonar. Ouvir a voz dela. Saber que estava ansiosa para o seu retorno. A luz do sol parecia estar sendo dragada por algo feito de puro medo. A vista embaçada e escurecida não distinguiu o carro que se aproximava. O carro que o atirou a muitos metros de distância deixando-o mais próximo de seu destino inicial, mas incapaz de prosseguir. A garganta seca repetia o nome dela. Ele tinha o que perder.


(biel)

RETRATO DE UM HOMEM POR UMA MÚSICA

A música ecoava... a voz era bastante suave. Os acordes do violão cada vez mais moles. Não queria pensar na música, tampouco na voz, mas aquilo incomoda a gente. Como cada coisa simples pode incomodar a gente desse jeito. Eu procuro entender tanta coisa, mas coisas simples jamais serão compreensíveis. Pelo menos não pra mim. E não porque eu não me esforço, mas porque são nelas que residem os segredos.
Enfim, andando entre os prédios da Avenida Paulista, o sentimento era algo engraçado. A cidade crescera tanto que começava a se entupir de si mesma. Como numa orquestra em que há instrumentos demais para a mesma função, impedindo que os demais instrumentos ocupem o palco. E na caminhada, sempre acompanhada pelo pensamento nela, a música servia como a trilha sonora para um filme. Mas um filme com apenas uma música. Não havia sequer uma bateria para as piadas, que não eram poucas e tampouco eram boas. O suave caminhar, a suavidade dos dedos entrelaçados. A certeza da volta conflituosa para a casa, a não-suavidade dos corpos no metrô.
O mais difícil era suportar o desejo que se impunha ali ao lado. Um desejo canhoto. Do avesso que se poderia imaginar. Mas a letra da música que se repetia sempre ajudava a ter muita calma. Por vezes, calma demais. E o desejo só fazia aumentar. As noites eram torturantes, insuportáveis. Mordia-me o lençol. O travesseiro me alfinetava. Nas noites frias os cobertores pesavam demasiado. Impediam de mover-me. Um sufoco.
Algumas tardes haviam dado uma prévia do que poderia acontecer. Ainda mais, do que se poderia sentir. Mas ali, no centro da cidade que era a maior do mundo só porque nos continha, a música não se despregava dos ouvidos. Quanta gente bonita circula por lá. Rostos realmente muito bonitos que eu olhava com muita calma. Homens e mulheres, mas as mulheres sempre foram a minha inspiração maior. Tão mais detalhadas que os homens. A partir dos rostos, inevitavelmente os olhos percorriam os corpos. Sem esquecer a suavidade dos dedos que estavam entrelaçados aos meus e com a memória daquele corpo mais próximo e quente como nunca antes pudera ter existido. Um leve estremecimento, uma leve excitação. Ela fala algo e a música recomeça. Não entendo como pode não entender as minhas intenções que, mesmo sendo sujas, são puras. Puras como fenômenos destruidores da nossa natureza.
Ah! Eu gosto da música. Gosto desse moço que canta. Tem uma voz gostosa e assustadoramente forte apesar de suave. E o sotaque? Claro, o sotaque! Trago à minha mão esquerda outro sotaque entrelaçado em meus dedos. Um sotaque que não é nem lá, nem cá. Num tom que não posso precisar. Tal como a música, cujo arranjo primeiro era já algo sublime e depois, orquestrado, o arranjo ganhou ares olímpicos. Assim como a música e o lençol, o sotaque andava me mordendo, me causando insônia. Mesmo agora quando penso nele fico mais acordado. A água que prepara a língua para um bom vinho, ou para um simples cafezinho. Todo requinte é pouco para este desejo canhoto.
Antes do encontro com ela a música parece que diminui seu volume. Para cada pequeno detalhe de mim há uma atenção maior. É quase um ritual que perpassa os atos que pareceriam mais corriqueiros como a escolha da roupa de baixo a ser usada. O barbear-se. Lavar os cabelos. O perfume é bom, mas deixa, quando aplicado ao pescoço, um gosto ruim para quem ataca aquela região com lábios dentes línguas desejos. Então desisto do perfume quando penso nessa possibilidade. A música ideal para o jantar é difícil precisar, mas essa que não sai da minha cabeça não poderia ser. Esta só tem a finalidade de me acalmar e me irritar, dependendo da hora do dia em que ela me assalta com mais violência.
Gosto do gosto frio da água da pia em minhas mãos pela manhã. Elas me trazem uma sensação de vivacidade. É um prazer que descobri numa época mais remota e muito menos feliz de minha vida, embora eu não soubesse que podia ser muito mais feliz do que fui naquele preciso momento. Gosto ainda de sentir este gosto ao som da música. Ah! Adoro música pela manhã.
Respiro fundo e quase me chega aquele cheiro quente do teu pescoço do teu ombro. O meu reino por um beijo em teu ombro enquanto, distraída, você prefere olhar pela janela do ônibus. A música quase me some dos ouvidos, o desejo aumenta muito. A música fica tão baixa que penso que ela finalmente me deixará. O silêncio da madrugada surge e quando o teu cheiro não me vem, o medo toma o seu lugar. Tenho medo de noite. Não do escuro, mas do Escuro. Quando esse medo me assola a música é só o que me resta. E quando nem ela me socorre, preciso levantar. Preciso ir até a sala. Ver televisão, afastar-me de mim para não pensar no Escuro. Não posso dormir sozinho.
Mais um dia, mais trabalho e os dias transcorrem, a torneira pinga. Preciso banhar-me. Sinto-me mal. Um banho organiza os pensamentos que não consigo por em ordem para escrever. Anestesia alguns locais. As lágrimas se dissolvem na água da chuva como ela dissolve as minhas intenções tão puras. Saio do banho. O frio que me aguarda do lado de fora do banheiro me faz sentir novamente a realidade. Finco o pé descalço no chão e sinto o frio. A televisão me aguarda sem graça. O computador encerra conversas sem graça. As fotografias dela nos condenam a sorrir eternamente. Lembro-me que naquele preciso dia bebi com as mãos da água da manhã ao som da música.
No dia seguinte um telefonema. A música quase desaparece. A voz dela ocupa o espaço. Avenida Paulista às 14:00 horas. No centro do mundo que o é só porque nos contém, os desejos ficarão por satisfazer. A noite, por dormir. Mas a música, a música se ouvirá pela manhã.


(biel)

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

a quinta espera

eu não esperava que viesses
e não viestes

e ainda me surpreendi
porque não viestes

(biel)

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

café da manhã

a água é fria, mesmo numa manhã de sol
não deu tempo que se aquecer nas caixas d'água sobre as lages de um bairro pobre
ainda há resquícios do frio da madugada que o impede de levantar apenas de cuecas

na pia:
dois pratos
duas taças
dois garfos
duas facas
duas tacinhas de sobremesa
duas colheres de sobremesa

nas mãos:
o gosto frio da água
a esponja
o detergente

no peito:
batidas aceleradas

nas costas:
as marcas

na cabeça:
a lembrança

na cama:
ainda o corpo nu estendido no calor dos lençois que o frio da madrugada desta vez não alcançou.

(biel)