terça-feira, 28 de setembro de 2010

Pipoca

Ao som da corneta, os soldados que quase não dormem despertam. E que maneira de se começar uma estória senão pelo raiar do dia, ou da corneta, ou do galo etc. Como era hábito desse pelotão tão especial, tudo já estava pré-pronto. Os fuzis reluziam pendurados no arsenal esperando por seus respctivos donos. Não havia confusão na hora de armar-se, pois cada fuzil tinha o encaixe perfeito para o dedo do atirador, além de ter as medidas perfeitas para apoiar sua parte posterior ao ombro amigo do soldado. As roupas todas dobradas e organizadas nos armários. O café da manhã, pão e água quente com dois grãos de café, é de responsabilidade dos soldados mais rápidos desse pelotão especial. Eles sempre acabam de se arrumar um pouco antes do resto do pelotão e preparam o café. O resto, outros cinco soldados, levam mais dois minutos. As fardas acinzentadas sem um vinco, sem uma dobra de amassado. Os cintos alinhados aos botões da farda. Os coturnos reluzentes e engraxados, sem uma falha apesar de tantos respingos de sangue, e uns tantos de saliva por parte da multidão.
Nas paredes da cabana, nenhuma foto de namoradas abandonadas em favor da nação. Nenhuma carta de mães desesperadas em baixo do colchão. Nem ao menos fotos pornográficas ou algo que indicasse uma presença feminina, além da morte enfrentada todos os dias.
Café tomado, a porta da cabana sangrava diretamente para a beira da arena. Afinal, aquele pelotão tinha apenas uma razão de existir. Ao atravessarem esse portal o silêncio é rompido abruptamente: a multidão nas arquibancadas delira de fervor. grita, sanguinolenta, palavras de apoio aos soldados e de desprezo aos inimigos. Alguns, no afã da sede, babam. O general já os espera em posição. General que se preza, perfila com os soldados no front. Um a um, os soldados tomam posição diante do muro crivado por projéteis não tão certeiros ou pelos que não desistiram de suas trajetórias apesar dos obstáculos.
O caminho ao centro da arena é sem tropeços, ritmado e calmo. Os gritos da multidão não abalam esses homens com nervos de gelo. Até o suor que se presumiria abundante com o sol escaldante naquela manhã, sabe a gelo. Um a um, perfilam. O general como primeiro homem à direita. os condenados já estavam presentes. Quando o último homem do pelotão toma posição a plateia ensandecida se cala. Uma nuvem cobre o sol e oferece algum refresco. Uma brisa leve gela os corações, mesmo o do general, mas não os dos soldados.
Os fuzis trazidos até ali apoiados aos ombros tão amigos são apresentados, uma reverência sonora soa na multidão. Algo como um "ohhhh" prolongado. À batida dos coturnos contra o chão de terra batida as pernas da multidão amolecem; o general estremece. As armas apresentadas esperam a ordem para possuírem os soldados. O general, com medo de perceberem sua perceptível alteração na tonalidade da voz, dá a ordem com o olhar. Os fuzis se engatilham. Buscam a ajuda do ombro amigo. O silêncio ganha peso na última movimentação do pelotão. Os fuzis desamparados desabam ao chão seguidos por seus ombros tão amigos após os uníssonos disparos. O do general é o primeiro a tocar o solo, seu ombro ainda o faz antes do fuzil do soldado mais rápido. A multidão, com calma, deixa a arena. O sangue desejado lá está, empoçando. Mas ainda assim os coturnos mantêm-se intactos.


(biel)

Imortalidade

A ideia de ficar para a história me obceca.
Na ânsia de ser eterno
esqueci-me de lembrar
daqueles que constroem os heróis
daqueles que não são lembrados
a não ser por aqueles que pra história ficaram:
o infinito mora nos esquecidos.

(biel)