terça-feira, 13 de julho de 2010

Pensamentos inspirados no casamento entre Shu e Ana

Não seria preciso lembrar – a nem um daqueles que se dispuseram a pensar um pouco e um pouco sem clemência sobre a própria vida – a pobreza, a um só tempo, estética, ética e política, inerente à idéia de casamento, tal qual a conhecemos vida adentro.

Não seria preciso lembrar, por exemplo, no que tange à estética, certa cafonice rastaqüera daqueles sonhos idos e atávicos de um tal vestido branco, puro, casto.

Não seria preciso lembrar também, no que tange à ética, a tristeza de um certo modo pastiche de se posicionar na vida, repetindo pari passu os mesmos enganos, as mesmas amarguras, as mesmas desilusões das gerações anteriores.

Por fim, não seria preciso lembrar – e qualquer velho marxista mesmo o faria há séculos –, no que tange à política, a que forças, a que ideologias, a que classes, a quais posições no jogo aderimos quando optamos pelo casamento.


Pois bem, atravessados mais de vinte anos de vida, sabemos de cor os protocolos do casamento. Sem espanto, somos convidados para mais um. Cientes dos estranhos poderes que o cercam, que o movimentam, separamos qualquer coisa de melhor em nós (tempo, dinheiro, carinho, mão-de-obra, presente, humor, entre outras miudezas) àqueles a quem queremos bem, a quem amamos, àqueles que também, infalivelmente, ingressarão, de livre e espontânea vontade, em mais uma instituição. Separamos e rumamos ao casamento: com algum cansaço, mas também com algum contentamento, é claro, em saber ou supor contentes estes que amamos.


Assim fui eu ao casamento entre Shu e Ana. Antes de ir, comecemos pelo começo, conversava com Biel, irmão do noivo, e indaguei, curioso, se a cerimônia seria religiosa ou civil. Ao que me respondeu Biel não ser religiosa nem civil. Desde então, certa inquietação, improvável em qualquer casamento, começou a tomar conta de mim.

Bem, agora, sim, fui ao casamento. Por não ser religiosa nem civil, a cerimônia não aconteceria nem em igrejas nem em cartórios. Aconteceria em um sítio. Já fui, nestes mais de vinte anos, a casamentos em chácaras, mas nunca com razões suficientemente convincentes para que acontecessem em uma chácara – poderiam, estes outros casamentos, terem sido realizados em qualquer outro lugar de confinamento, como as igrejas e os cartórios, pois as instâncias de autoridade lá estavam presentes. Coisa completamente distinta deste casamento que ora narro (começo a temer que com aquela pobreza que eu denunciara), pois este foi um casamento na terra, da terra, para a terra. Diria um grande homem: inenarrável. Terra, Gaia. Gaio casamento, alegre casamento, desde aí. Terra, não como re-ligação a uma natureza perdida, menos ainda como um lar, mas como superfície de passagem, como paisagem de diversos modos de vidas, como terreno de inscrição de possíveis danças, como eterno retorno, talvez.

Casamento este que realizou um rito de passagem, mesmo, e não um protocolo. Os protocolos prestam contas à sociedade e, mais que tudo, aos governos destas sociedades e, mais ainda que tudo, aos cálculos destes governos destas sociedades sobre aquilo que guardaríamos de mais íntimo, de mais inconfessável, de mais profundamente nosso. Os ritos de passagem não prestam contas sobre intimidades, pelo contrário: absoluta e rigorosamente impessoais, inscrevem-se em movimentos preexistentes, até mesmo imemoriais. A partir dos protocolos, impõem a nós ou nos incitam a uma certa identidade (por exemplo, a de casado) e nos fixam em certa posição numérica (os protocolos sempre têm números). Nos ritos de passagem, ao contrário, perdemos nosso rosto e adquirimos o de uma divindade, o de uma energia, o de uma atmosfera. Os protocolos nos condenam aos limites de certa humanidade, aos limites da forma-homem; os ritos nos obrigam a nos exceder. Assim como os espaços de confinamento nos prendem e nos obrigam a alguns gestos e vetam a possibilidade de criação, enquanto a terra nos convida à passagem, à desterritorialização.

Este casamento prescindiu, como já disse, da triste personagem pastoral, seja de um padre ou de quem for. Triste personagem destinada a alimentar paixões tristes, como a resignação, a má-consciência, a culpa. Triste personagem que exige promessas e que, ela mesma, promete, em nome de algo transcendente (pode ser Deus, pode ser o Estado), uma redenção final. Triste personagem que, também ela, inibe a criação, recomendando uma vida como cópia o mais próxima possível de alguns exemplos e que encerra, em si mesma, um exemplo a ser seguido. Triste personagem que parece muito pontuar o fim de uma vida e encarcerar aqueles que por esta figuram passam em uma espécie de morte em vida (daí, quem sabe?, aquele hábito risível de uma “despedida de solteiro”, como um último desejo antes de morrer ou como última celebração da vida).

O que este casamento consumou, diametralmente oposto, foi uma primeira celebração da vida, a qual nos convocou a todos, já no fim da cerimônia, o Shu. E pôde celebrar, com tanto vigor, a vida, porque os noivos, durante a década de namoro, puderam inventar novos modos de se relacionar com as outras pessoas, outros modos de se afetar e ser afetados por elas, outros modos de persistirem apaixonados (imagino toda a sorte de paixões) uns pelos outros, resistindo às intempéries dos modos de vida que circulam entre nós, pós-modernos, sem ceder às famosas desculpas que nós, sonsos, forjamos para nos desculpar por uma vida pobre.

Os amigos dos noivos ofereceram o oposto daquilo que aquela triste personagem pastoral poderia oferecer, o que seja: separar os acontecimentos e os julgar como certos ou errados, como bem ou mal, como pios ou ímpios, como legais ou ilegais, como justos ou injustos. Os amigos e familiares dos noivos se recusaram a uma tal abordagem dos acontecimentos desta década de namoro e do próprio acontecimento do casamento. Os amigos, os familiares e também os noivos criaram. Criaram um casamento outro, um outro modo de se casar, sem possibilidade de duplicação. Não estou entendendo, aqui, criação como precisamente qualquer coisa que nunca se tenha visto sob a face da Terra. Nem, muito menos, como manifestação da individualidade e da originalidade das pessoas – longe de mim! Estou entendendo criação, à laia moderna, como tudo aquilo que barra a inércia, que interrompe o fluxo, que embaralha o ordinário, que desafia o previsível: um susto, um asma, um domingo insólito?

O que me faz pensar em um casamento ético, no primeiro casamento ético a que pude assistir. Penso que esta seja, em última instância, a oposição entre a moral e a ética: enquanto a moral tem que ver com os deveres e as transcendências, a ética tem que ver com as potências e os afetos. A moral é normalizadora, a ética é criativa. Este foi o primeiro casamento em que os acontecimentos não contaram por que são certos ou errados, por que devemos ou não cumpri-los, mas por que implicam em tal ou qual modo de vida, por que criam ou não outros modos.

Pode-se pensar todo este casamento em termos de contos de fada. Mas não me agrada muito. Nem tendo em vista os mais tolos da Walt Disney nem tendo em vista os mais ferozes dos irmãos Grimm. Porque os contos de fada se situam num passado imemorial. E este casamento, apesar do tom de ritual (que nos faz situar em tempo imemorial também ou em um não-tempo, não sei), foi realizado plenamente em 2010 e conta com dois noivos paulistanos, é importante não esquecer. No meu entendimento, este casamento nada tem de passadista, de romântico.

E foi justamente lá, justamente numa forma tão apodrecida, tão cristalizada, tão aviltada, tão arruinada, justamente num casamento, justamente onde só poderíamos esperar pobreza, que surpreendemos alguma volúpia criativa, que surpreendemos a vida como obra de arte. Uma vida cuidadosamente ensaiada, cujo dia de décimo ano de namoro pode coincidir com o do casamento, apesar de ainda fresca e desmedida. Como gosto de pensar, uma vida milimetricamente desmedida. Uma vida também improvisada, com espaços para lágrimas, silêncios e omissões ainda mais belos que os ensaios, mas que não poderiam emergir sem os ensaios. Uma vida nada hollywood, nada espetacularizada, mas na qual cabem a expansão, a dilatação. Ainda.


Casamento exuberante, não-romântico, que nos deu a todos um presente ambíguo: antes de mais nada, parece-me, deu-nos a possibilidade, que praticamente não havia mais, de nos casar também. Em compensação, depois deste, nossos casamentos não poderão mais ser como foram o de nossos pais, não poderão ser protocolais. Do mesmo modo que não poderão ser como foi o do Shu e da Ana, insisto: não há possibilidade cópia, duplicação, normalização. Não para nós. Não mais.

(Gu)

sábado, 10 de julho de 2010

Ordem e progresso

Chegara impaciente da audiência em que injustamente perdeu a causa, apenas por entrar em litígio contra alguém de família importante na insignificante cidadezinha, acreditava. Apressara-se em alcançar a arruinada rodoviária, para pegar o ônibus das 13hs – ainda cumpriria outra audiência à tarde em São Paulo. Chegara às 12h55m, comprara a passagem.
Às 13h15, o ônibus ainda não estacionara. Os minutos arrastavam-se e, consigo próprios, suores do gordo e preocupado advogado.
Somente às 13h45m, o ônibus chegou. Enfileiraram-se os passageiros.
Ele se dirigiu à sua poltrona, número vinte. Lá já estava sentado um jovem, ouvindo seu I pod. O advogado reclamou seu lugar. O jovem insolente, após certo esforço do advogado em se fazer ouvir, respondeu apenas com um gesto obsceno.
O advogado foi ter com o motorista, que adentrou em seu ônibus indignado com essa juventude. O jovem, para não ser transtornado também nos próximos funks, tratou de se encaminhar à poltrona comprada, número oito.
Lá estava sentado um velho árabe, que não sabia falar nem ler português e que adquirira a passagem com a ajuda de seu neto brasileiro. Depois de muito custo, e apenas por vulnerabilidade, não por entendimento, o árabe mudou-se para a poltrona cinco.
Lá se sentava uma moça, que não passava perto de poltrona par, porque dava azar. O velho árabe não se importaria em sentar-se em qualquer outra poltrona, porém o quiprocó se fazia tamanho que o motorista fez questão de que tudo findasse em ordem. Alguns lúcidos argumentos de um cientista convenceram provisoriamente a moça de sua possível insensatez.
A moça mudou-se, curiosamente, para a poltrona seis, do cientista, que lá estava, simplesmente, porque sua poltrona já tinha sido ocupada por uma senhora e porque preferira não incomodá-la.
A senhora lá estava, porque sempre se sentava na poltrona dez. Como tudo, na vida, tem uma primeira vez, dizem, ela mudou-se para a poltrona dezessete. A jovem que ocupava este lugar, lá estava apenas porque se confundira e porque queria se aquecer ao sol, mas prontamente aceitou migrar para a poltrona ao lado. Ainda esta poltrona havia sido comprada pela senhora, pois era sempre acompanhada pelo marido, que morrera há doze anos, mas que haveria de apreciar ter seu lugar ao lado da inseparável e amada esposa.
Esta jovem foi, então, para a poltrona treze, ao sol enfim, onde se sentava um dos integrantes da dupla sertaneja da cidade. Foi difícil para todos desalojá-los, ambos, dos lugares por eles escolhidos, mas fazer o quê? Mazelas da justiça...
Seus corpos fortes foram agraciar as poltronas onze e doze. Justamente onde se sentava sua fã número 1, fundadora do primeiro fã-clube, com seu poodlezinho devidamente tosado e vestido com uma camisa oficial da dupla e com lacinhos frágeis. Nem foi preciso pedir que ela se mudasse; fosse preciso, talvez falhassem suas vozes poderosas. Ela e seu cãozinho, que secretamente temiam tal falha, rápido foram para as poltronas três e quatro.
Lá estava um peão esparramado por ambas poltronas. Comprara duas, para que não fosse incomodado por nenhum outro passageiro. Foi incomodado, porque não comprara precisamente aquelas duas. Ele e suas botas imponentes trotaram, pois, para as poltronas quinze e dezesseis.
Na poltrona dezesseis, sentava-se a bela loura das curvas estonteantes e de decote generoso. O peão mal se importou em que ela se sentasse lá. A loura também se mostrou agradada com a presença do peão, inclinando-se para ajeitar o cinto de segurança dele. O motorista, mais uma vez, não gostou da história, já que a moça só poderia estar em poltrona errada. Ambos fizeram pouco caso. Até que o marido halterofilista desta loura saiu do banheiro, avistou o assanhamento e deu uma surra no peão como na esposa.
Quando tinha ido comprar passagem, o halterofilista já não encontrara duas passagens juntas: portanto, marido e esposa desavergonhada sentaram-se em lugares separados. Estavam em posse das passagens sete, ao lado do jovem insolente, e nove, ao lado do cientista. O halterofilista ponderou prudentemente que era melhor ele se sentar ao lado do jovem insolente e a mulher, ao lado do hábil cientista.
Na poltrona sete, sentava-se uma discreta mãe com um filho de colo que não parava de vomitar. Por esta boa razão, não pretendia ela mudar de lugar. O motorista, entretanto, não os deixou escapar, averiguou suas passagens. Já esquecido do atraso que se fazia notável, fez questão de chamar alguém da limpeza e efetuar a mudança. Mãe e filho mudaram-se para a poltrona dezenove, onde o menino vomitaria no ordeiro e justo advogado.
Na poltrona nove, estava um maluco varrido que pedira a passagem quatorze, porque pensava poder garimpar quartzo, otimizando o tempo da viagem. Quando do convencimento árduo de que não estava na poltrona que tanto pedira, dirigiu-se ávido à sua poltrona de direito.
Lá se sentava, entretanto, para nosso pasmo, outro passageiro com a poltrona catorze. O aturdido motorista mandou chamar a vendedora. Ela estava inflexivelmente certa de que catorze e quatorze eram dois números distintos, pois eram duas palavras distintas. Muito foi o esforço filológico do motorista em elucidar que não se tratava de duas palavras distintas mas de variações de uma só palavra. A vendedora não se convenceu, decepcionou-se profundamente com os ônibus de sua empresa, que julgara tão séria antes, e decidiu redigir uma petição ao dono, exigindo uma poltrona para o número catorze e outra, para o número quatorze.
O motorista, promovendo um debate democrático e aberto com seus passageiros, acabou sentenciando que o maluco se sentasse na poltrona catorze e que o outro, na poltrona nove.
Para desilusão de todos que, agora, esperavam iniciar viagem, finalmente, chegou o atrasado passageiro da poltrona nove. O motorista foi investigar as passagens da poltrona dois e da um, as únicas até então sem problemas. O elegante e taciturno passageiro da poltrona dois sentava-se na poltrona correta, e reputava a perda de tanto tempo para começar uma viagem assim como, apesar de ocupar a poltrona correta e apesar de manter a paciência, a suspeita de ilegitimidade um abuso exorbitante, mas preferiu nada falar, para não perder ainda mais tempo.
O passageiro da poltrona um, descobriu-se logo, era, na verdade, o motorista, que bebera um pouco mais, no almoço, e que pedira a seu primo dirigir por ele. O primo, aquele que parecia tanto o motorista, enterrou a mão no bolso e encontrou a passagem número um. Porém, gentilmente, cedeu-a ao passageiro atrasado da poltrona nove e foi buscar passagem para o próximo ônibus.
Gentilezas, às vezes, poupam vidas, pois o ônibus tropeçou em um dos inumeráveis buracos da estradinha e desabou com todos seus passageiros, deslocando-os, pela última vez, de seus lugares corretos e justos.

(Gu)