quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Ao som de seu jorge

uma semente dança
desestabiliza
como se sua raiz fosse ventania
é a guerra civíl do ser
enquanto dançam as pétalas que não vou ver desabrochar.

passado um tempo
sorrio longe, mas longamente:
no meu jardim, mais alegre,
me sorri de volta uma margarida.



(biel)

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

DIANILINA E O NÔIVO

(singelinha homenagem ao Guimarães Rosa e à sua cidade: Cordisburgo)

Era que agora, morena, raiava na igreja. Há muito, de esticado, que esperavam-na. O nôivo, então! Erigira-a, ele mesmo, a igreja que ora acenariava.
Mas erigira-a no tempo do Ronca, no mais-que-perfeito, no Monte de Constança, no esquecido de Seu Alfredão das Astúcias. Com mero esmero.
Toninho Sozinho agradou de Dianilina, quando as vistas suas toparam com o encantamento do rostinho dela amoldurado na janela de um carro – sua graça, contudo, que se exponha, era Toninho Souza, para a certidão das mães e das sinas . E jacaré viu o tal do carro? Nem ninguém que não ele. Esparramara-se, a canino miúdo, a parvoíce sandia.
Quem jamais tivera cuidados de pedreiro, arrolou betoneira semi-fixa, cal hidrada, cimento, aglom errante, água benta, cinzas vulcânicas de la cittá dell’amore: Venezia, clínquer, areia de quartzo natural extraída do Tigre e do Eufrates, tijolos maciço, tosco, furado, holandês, flutuante e refratário, e toda a construção de avemaria, nem gorda nem magra nem insossa, para construir uma igreja. Se era beatice? Beatitude, só se. Pois que “o que é o que é... um ateu danado de fazer igreja?” Nem redenção fosse. Quando dava de bater badalo, segredava luminoso: haveria de servir para seu casamento com a morena. Mas causo de quê casar numa igreja desprovido de fé na bênção de Deus? A morena cria. Só ladeava seu coração mediante aquele Um. O que fazer? Causo de quê, então, erigir uma igreja, em havendo quantas pelo Monte? Uai, sô, era o que parlava. Por cada tijolo salpicava aquele sossoriso. Aquele, visalumbrado no supetão do carro.
Como que podia bracinhos tão minguados aquele tanto? Toninho Sozinho elucidava era que o amor é um polvo arretado na robustez. Ainda que a gente interrogue: se o amor era pedreiro de Toninho ou se Toninho era pedreiro do amor?
A desmedida aziada é que assombrou: Seu Alfredão das Astúcias, ainda marido da morena, alembrou-se de nosso Monte, recheado de uma saudade marvada, e travessou serras léguas, a fim de poisar por estas bandas.
Qual não foi o estarrecimento de todos vizinhos averiguando a sabedoria esquisita de Toninho Sozinho. Ex-terracimento, quando este gigagiante tomou o monte, escondendo o Sol nas suas costas, semeando as trevas medonhas. Arribaram.
Como palmilhasse a passos prestos prestes, a fome sacudiu o estendido sertão do bucho de Seu Alfredão. Tanto mais! alcançou-lhe as narigas colossais o perfume de sua morena, inventado nos tijolinhos da igreja de Toninho Sozinho. A salivar, devorou a seco o primeiro caco de telha, o segundo, o terceiro... e quede nôivo? Pode ser que camuflado esperto ainda nos derradeiros. A delícia desusada do calcário, porém, fazia acelerar voragem. Mais e mais e menos e menos tijolo. Que é do nôivo?
Ufa que se tinha destinado, dias antes sem prévias, à Cordisburgo, rumo à colheita de rosa uma única. Partira com suas alpercatas e a lembrança ligeira amada. Era julho, a estória cumpria metade. Os tucanos, em plumagem alvinegra, guiavam. Seu bico de refazer a vereda do sol, partindo das claridades amarelas, carregando, vagar, laránejos aprumos, retesando tudo em largo arco, despencando, por fim, em foco negro, como o processo invertido do café, legendando, tão súbito, o tempo, que passava lépido piado, rolando em cada pedrinha sertaneja. A rosa em atacada florescência concluiria o altar. Rosa Rosa é que servia, sem porventuras.
Cada qual sorria mais ímpar, aperfeiçoada, querendo ser colhida e dar passagem a um casamento desses. Colhidas todas, foi-se de rosa até os dentes de volta para o Monte, atentando os estercos de tucano pelo caminho, para não se perder. E, alarmado, desviando o olhar das fremosas donzelas cordisburguenses, evitando perdições.
As sépalas e pétalas roseanas arrepiaram à devastação. Não restasse uma sombra. Sequer de grama crescida. Tudo do Monte levado na pezada. Desfiado, esfiapado, esfiampado. ¿Como entretecer o mundo em sete dias, havendo mais três pro fim? Oh, excomungado, com os seiscentos milhões de diabos! filho de uma cadela e seiscentos mil cães! infeliz das costa oca! marmota da bexiga livre! fariseu duma figa! - esconjurava. O estertor galopa a inequívocos estribos. Sem rumo, desarrumado, assustou o nôivo o insólito design em lágrima de um rio. Se não haveria de ser assim!
Pois tratou de convocar, em outras paragens, um casal pra lá de apaixonado, que repletaria o Monte de criançitas. A caminho, tropeçou em Barbacena, quando atinou afugentar os biloladinhos do manicômio. Adiante, os cangaceiros de um presídio. Todos seus conterrâneos, agora. Mas caçava ainda sem êxito um casal phoderoso nas venturas apaixonadas. Candeeiro aceso: pronto: passara pela janela em que um amante desadormecia, apenas contemplava sua amada. Porém sucedeu que, durante as próximas duas noites, insistia em velar exclusivo o sono da amada, sem conceder tréguas às próprias pestanas! Curioso o nôivo, não obstante a indiscrição, inquiriu o amante, ao que ele respondeu: Era uma vez a hora de dormir... Dormi meu estoque, enquanto não surgia a Bem-Amada, pois sabia que, fosse ela alumbrar, para convir sentinela e contemplação diuturna de seu sono e de sua vigília... Como julgasse amor o justo-adequado, o nôivo concedeu-lhes, aos amantes, trono-mor de seu reinozinho. Não sem antes, claro, projetar a escala da urbe, calcular o zoneamento e a organização físico-territorial das atividades no espaço de decisões centralizadas, edificando choupanas, casebres, chalés, armazéns rococó, em caramujos e caracóis – mímesis ondulantes só das madeixas negras da morena – palácios de pau-a-pique, jardins bizantinos, pastos góticos, hortas fartas e, por fim, nítido, a igrejinha inda mais encantada do que outrora, lançando mão (calejada) das artes pedreiras.
As crianças principiavam nascimento, os bois satisfaziam-se nas abundâncias, os cavalos árabes já vinham gozar turismo, passarinhos de toda sorte orquestravam melodias, freteniam frótolas, aquarelavam novos céus; proseava-se com Romeu Julieta Dante Alighieri Beatrice Eros Psichê Tristão Isolda Safo Riobaldo Diadorim Don Juan Orfeu Eurídice Kama, o deus do amor, Deus (existia muito Deus pelo Monte, visse! cada um com Vossa letra maiúscula!), mas também coçava-se cabelo, salvaguardavam-se óculos na geladeiras, lápis, no açucareiro, estapeavam-se a si mesmos e entre si, entretanto nunca à vera raiva, as vassouras logravam motores, flores aconselhavam e assim...
Enquanto isso, Seu Alfredão das Astúcias havia crescido tanto que repousava o cocuruto nas nuvens mais baixas, quando da fadiga. Naquelas alturas, como que se vigiaria a presença da esposa? E como que a esposa continuava esposa, há remotos palmos? Infeliz, Dianilina cascara fora há uns tempos. Desolada, porém. Sem quem. Desasida. Abandonara o lar vestida de nôiva, desrazoável.
Não adivinhava que um Monte inteiro a aguardava, ávido. Caminhou sem eira nem estribeira. Auspício era, sapientes de seu gosto por uvas, os moradores do Monte espalharem refeição frugal aos montes perfazendo o caminho inté a igrejinha, então, pronta.
Ave.
Ela se aproximava, em passos altaneiros, como soubesse que cada seu passo moreno era um acontecimento, um milagrezinho, e que deveria, portanto, acontecer sempre de repente e sempre vagarosamente, para poder ocupar cada pedaço do coração.
Comoção estacada. Ninguém supunha, em seus mais encantados sonhos, uma beleza assim vasta e solene. O vestido branco translúcido. Raios solares rendiam homenagens à delicadeza de cada curvinha perseverante. Os pezinhos, cujo dedo ao lado do dedão e o próprio tinham mesmo tamanho, acarinhavam as pétalas e sépalas roseanas, enfim, sossegadas. As túrgidas pernas mais belas que as colunas da ordem coríntia do século V a.C. A leve colininha da barriga, agora alimentada, relevava pura luz. Tempo nenhum fora capaz de derribar a altivez tanto noturna quanto rotunda dos. Seios. Maravilhal!
Os músicos, aluados, deixaram escapar os instrumentos. Os presentes, de pé por mesura, tombaram nas almofadas das cadeiras. A derradeira uvinha, na mão do nôivo tremendo, grisalho, ameaçou cair, mas foi salva por um reflexo instantâneo. A nôiva seguia para o sem-fim, à beira do altar. Seguia, seguida da cidade súdita súbita, sem sombra, subalar – dia-a-dianelindamente.

(Gu)