terça-feira, 26 de janeiro de 2010

UMA ESTÓRIA MASCULINA

Um homem na estrada caminha o seu caminho, não olha pra trás e pensa que é grande a sua jornada. Ou pior, pensa que é o escolhido para fazer o que está indo fazer. Não sabe que o que realmente acontece é que ele sempre tem algo a perder. Só é grande o homem que não tem nada a perder. Onde não mora mais a fé. Onde não mora mais seus amados. Ele pode realmente tentar, mas nunca poderá ser assim tão grande quanto ele pensa que é. A estrada não lhe é assim tão boa que lhe tire tudo para que ele seja grande.
Na estrada ele sabe, traz a certeza de ser o único. Caminha lentamente, calmamente. O olhar erguido, a cabeça meio baixa, um gato que prepara o ataque ao rato. Em cada parada da estrada arranca suspiros. As moças lhe desejam sorte sonhando em ser o motivo da busca. Mandam-lhe beijos aéreos que ele rejeita por ter consigo a lembrança da amada deixada para trás para cumprir a missão. Ou seria uma Missão? Se em nome de deus ele corresse. Ou lembrasse Forest Gump. Se...
E em cada parada cada homem com cada carro com cada esposa com cada filho com cada brincadeira em cada canto era lembrado desejado insultado comentado criticado invejado. Caminhar ereto era uma afronta ao destino. Uma afronta a quem pensasse em lhe impedir a passagem. Ele vinha seguro. Tão seguro. Seguro como se não tivesse o que perder. Jamais lhe ocorreu que ele poderia ser algo que os outros pudessem perder. Havia tanta fé naquela jornada. Ainda que o motivo fosse nobre, não era muito original. Tanta comoção. Ele não percebeu que se tornara num ídolo. Quase uma lenda. Algumas estórias começaram a surgir pela sua rota. Estórias que não se sabe como começaram, mas que caminhavam mais rápido que o nosso viajante. Antecipavam-lhe a chegada. E em pouco tempo, a inveja foi tomando outras formas, os desejos foram ficando mais explícitos. Mulheres nuas invadiam a tenda na qual acampava implorando para serem possuídas. Os homens dos povoados trancafiavam filhas e esposas até que o caminhante chegasse à próxima cidade.
Ouve inclusive um incidente de desafio a duelo. Tendo, à luz do dia, a mulher de um homem já estabilizado, com duas filhas pequenas. Um homem inteiramente feliz em seu casamento um homem que resistiu às tentações oferecidas pela secretária em seu escritório. Resistiu às orgias para as quais fora convidado durante os primeiros dois anos de matrimônio. Um homem que amava. Estando este homem em seu escritório, do alto do prédio podia ver a estrada. A multidão que acompanhava o nosso viajante sujou-lhe o horizonte. O homem que amava já tinha conhecimento do viajante. As estórias eram tão irreais que ele chegou a duvidar da veracidade da caminhada, mas lá estava o nosso caminhante que não podemos chamar de nobre, porém m adjetivo é necessário. Que seja corajoso, lá estava nosso caminhante corajoso. O cortejo aproximava-se va-ga-ro-sa-men-te. O homem que amava havia acabado de almoçar e entrava num estado levemente sonolento. O corajoso viajante parecia ter acabado também de fazer sua refeição, pois caminhou ainda por mais uma hora sem parar. Quando a procissão se aproximou do prédio, chegando à fonte da cidade que ficava somente a algumas quadras do prédio, o homem que amava pode distinguir sua esposa dentre os acompanhantes do caminhante. Não acreditava que sua esposa, mulher tão centrada, pudesse ter sido seduzida por essa sensação que tomava conta de todo o estado desde que começara a caminhada. Porém lá estava ela. Tomou seu direito como chefe, cancelou uma ligação que teria de fazer e foi juntar-se à esposa para ver de perto o viajante. Estava somente curioso para lhe conhecer o rosto. Os boatos eram tantos que ele já não poderia saber que imagem formar em sua mente. O viajante havia parado na fonte para um gole d’água e um descanso de quinze minutos. Ao alcançar a fonte, o viajante logo reconheceu o viajante pelo fato deste estar levemente afastado da multidão, entretanto era o único para o qual todos olhavam. Moreno, alto, forte, olhos escuros, cabelo escuro. Uma figura que lembrava alguém, talvez algum ator de filmes estadunidenses. Então se voltou mais uma vez à multidão. Encontrou os olhos da esposa brilhantes, a pele clara ao sol parecia arder. Sorriu por meio segundo. Percebeu que os olhos dela estavam ali e não se moviam. De encontro ao viajante. A fúria lhe subiu. Postou-se entre o olhar da esposa e o caminhante. Ela enrubesceu. Sem pensar, dirigiu-se ao viajante que pouco sabia o que causara. Desafiou para um duelo. Quis resolver tudo no braço. Sabia que não teria a menor chance. Lançaria o rosto de encontro àquelas mãos enormes se fosse necessário para causar algum dano ao viajante. A mulher interveio. Pediu-lhe para que esquecesse. Implorou com sinceridade em nome do amor que ele lhe tinha e que ela sempre nutriu por ele também. Ela nunca mentira o dizer que o amava. Ele parou. Olhou-a com calma. Enxergou-lhe o arrependimento. Perdoou-lhe ao custo de um fígado que lhe era bicado por uma ave a cada vez que parecia ter esquecido o assunto.
O homem continuou sua viagem.
O homem que amava iniciou a rotina de suicídios diários.
Esquecido já do acontecimento, com suas atenções todas voltadas apenas para o seu objetivo, o homem caminha. Com coragem. Havia já escapado de duas tentativas de homicídio. Uma delas encontrou sucesso em assassinar, mas errou o alvo a ser morto. Como havia muitos seguidores, muitos deles usavam barracas iguais à do homem que caminhava para com ele acampar. Em uma noite, um homem errou a barraca e esfaqueou um jovem rapaz de 16 anos que se deixou levar pelos ideais do caminhante. Com tudo isso, só fazia aumentar a fama e a nobreza da missão. Gostava disso. Gostava de se sentir o centro, mas não era prepotente. Uma figura simpática, carismática. Movera uma multidão sem dizer uma palavra. Porém não os desencoraja. Mesmo sendo exclusivamente sua a caminhada. Não perdera uma noite de sono pelo rapaz assassinado à barraca ao lado. Não mandara sequer condolências à família do rapaz que julgava que o filho estivesse na escola.as dúvidas ainda não lhe ocorriam. As dúvidas são fatais.
Duvidando de si, um homem se apresentou ao caminhante. Era o homem triste. O homem triste tinha perdido tudo o que tinha. Os homens que perdem tudo têm uma chance de se encontrar. Mas não este. Este enterrara-se. Respirava por hábito. Fazia hora extra no mundo. A filha e a esposa mortas num acidente automobilístico arrasaram sua vida. Cheirava a álcool. Os olhos amarelecidos e avermelhados ao fundo. Confundia-se com restos da cidade. Era uma grande cidade, uma verdadeira megalópole. Vira a comoção causada pela passagem do viajante em outras cidades pelos telejornais nos bares em que costumava adormecer. Não sabia bem o que acontecia, mas excitara-se com a novidade. Um velho com um novo bicho de estimação ou uma nova planta ou um novo programa de pesca.
Depois de duas ou três quedas pelo caminho, divisou uma mancha escura. Caminhou em direção a ela. Logo começou a ouvir um chiado. Ainda não sabia o que estava acontecendo nem o que estava exatamente fazendo. Mas caminhava seguro de onde queria ir. O chiado tornou-se em vozes. A mancha, em multidão. Distinguiu pelo afastamento um moço moreno. Sorria pra si mesmo. Invejou-o como quase todos que o seguiam. Chegou-se perto. O homem moreno ensaiou um gesto de repulsa, mas conteve-se a apenas retorceu o rosto por conta do cheiro do homem triste. O homem triste perguntou-lhe porque caminhava. O viajante respondeu. O homem triste ponderou como era ponderada sua idade, nem lá, nem cá: meia idade. Retomou lembranças que não quiseram ouvir quando ele entrara em decadência. Lembrou-se da angústia. Quis voar para o bar. Sabia que seria um vôo com turbulências, algumas escoriações e hematomas. Pensou. Ressentiu-se da vida. Olhou mais uma vez o viajante moreno e bonito. Lembrou-se de si mesmo. Deixou-se ficar ali. A multidão partiu seguindo o viajante. Sentou-se onde esteve o viajante. Sentiu vontade de chorar. Chorou. Levantou-se. A embriaguez passara. Caçou no bolso as chaves do carro. Lembrou-se que o motorista que tirou-lhe a vida estava embriagado ao volante. Perdera as contas de quantas vezes dirigiu embriagado antes disso acontecer. Sentiu vontade de chorar. Chorou. Voltou pra casa. Banhou-se.
Viajava o nosso caminhante. Determinado. Embora não muito perseverante. Gostava de conversar com os jovens cheios de ideologias que lhe perseguiam. Encontrava furos em todas as ideologias. Pontos negativos. Era inteligente. Mas só o suficiente para contestar, nunca para defender. Afinal, defender é o mais difícil, por isso dizemos que a melhor defesa é o ataque. Sua próxima parada foi num vilarejo tranqüilo. Ali era grande a solidariedade do povo que vivia com pouco. Comeu de graça. Banqueteou-se, na verdade. Todos queriam trazer o que de melhor havia em suas casas para o afamado viajante. Metade da multidão parara na entrada da cidade num pequeno boteco que servia almoço. Alguns passos adiante o viajante foi abordado pelos moradores. Após o banquete, enquanto ainda saboreava a sobremesa, sem saber que estava condenando quatro crianças a ficarem sem sobremesa por toda a semana, viu sentar-se um jovem à mesa armada pra ele. Estranhou pois todos permaneceram de pé enquanto ele comia. Antes que ele pudesse perguntar-lhe o nome, o jovem disparou: o senhor caminha para o vazio. Não deveria caminhar apenas para provar ao mundo. Esqueceu-se de si? Afinal, de que lhe vale a cruzada se ela nunca será também sua. Já houve mortes. Sua eloqüência é invejável, porém vazia. Não posso acreditar que de onde você vem possam ser todos assim. Se forem, me avise para que eu saiba qual será a próxima cidade a ser varrida do mapa nos próximos dois anos. E o senhor... Não pode completar a frase, a indigestão que o homem que falava causou teve como conseqüência um cruzado de direita que o fez engolir um dos dentes e ainda lhe rendeu um nariz quebrado. O homem que falava apenas esperava a contestação que vira nos noticiários. Queria acreditar naquele seu herói, mas era preciso palavras para o tornar mais que humano. Mais que um homem. O homem que falava obteve sua resposta. Afinal, a melhor defesa do viajante foi o ataque. Levantou-se, saiu da cidade o mais rápido que pode.
Ninguém havia refletido sobre o que aconteceria depois da missão cumprida. Talvez já tivessem cogitado um retorno glorioso. Refazendo o percurso inversamente ao início. Recolhendo as palavras que todos lhe diriam desejando-lhe toda sorte em sua próxima caminhada. A chegada em casa. O encontro com a mulher. O beijo longo de fim-de-filme. Inclusive ele, o caminhante, já havia pensado nisso. Nunca lhe ocorrera a possibilidade de falhar em sua missão. Ou que qualquer coisa pudesse ocorrer-lhe. Nunca até agora. Caso não conseguisse completar a sua jornada sua mulher se decepcionaria. Provavelmente o acharia um fraco. Caminhar tanto para nada. O abandonaria. Encontraria com alguém na mesma estrada que ele caminhava agora. Ela seria capaz? Olhar como me olhou aquela moça de pele clara ardendo ao sol para outro homem? Pensou o homem que amava e sentiu o sangue gelar. O chão parecia sugar-lhe as forças, os joelhos começaram a dobrar-se involuntariamente. Precisava falar com ela. Estava perdendo a sanidade. Avistou um telefone público do outro lado da estrada. Não teve dúvidas. Precisava telefonar. Ouvir a voz dela. Saber que estava ansiosa para o seu retorno. A luz do sol parecia estar sendo dragada por algo feito de puro medo. A vista embaçada e escurecida não distinguiu o carro que se aproximava. O carro que o atirou a muitos metros de distância deixando-o mais próximo de seu destino inicial, mas incapaz de prosseguir. A garganta seca repetia o nome dela. Ele tinha o que perder.


(biel)

Um comentário:

Biboca disse...

Meu deus... estou chocada! É um comentário meio bobo, digno de uma biboca de verdade... mas estou estupefata... genial!