terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Excerto de relatório de estágio - Análise documental: uma carta, uma carta de amor

Pois assim é, Bem-Amada... nos arrancaram primeiro o lar, depois os filhos e, finalmente, nos separaram. E a dor, agora, consome até a derradeira veia...
Não te entristeças, contudo, Bem-Amada, que há muito principiara teu sofrimento e, a despeito de ter ele também talhado cada pétala morena do teu corpo, já é hora dos sorrisos virem abrir a flor dos seus lábios, onde orvalham o mel e o alfabeto.
Não te entristeças, que a tristeza eu a bebo toda. Tens marido, filhas, 2º ano, CEUs, escola em Cotia, eu tenho o cipó, na casa da Vó, eu tenho a poesia; e a tristeza, portanto, roubo-a inteira dos teus olhos e não reparto. Segue com tuas sandálias de felicidade. Segue, que, se seguires, nem a morte me roubará de nós.
Não te entristeças, morena bem amada! Não te entristeças, pois que minhas mãos, estas que ora te escrevem, ainda estão junto às tuas, sujas de cola. E ainda confeccionam cartazes de calendários e parlendas. Ainda repassam os mesmos exercícios de matemática e as mesmas palavras, com A, com B, com C, com D, com D, com D... Estas mãos ainda tremem e suam frio antes de sonharem acarinhar, brevemente, mais uma vez, teus cabelos sem luar, teus ombros, antes de sonharem tombar no precipício calicino da tua cintura. Estas mãos minhas não se desvencilhariam da cola tenaz das tuas mãos, a não ser quisesses muito. E olha, pensando bem, possivelmente nem com tanto querer assim.
Não te entristeças jamais... já que, afinal, quem faz os calendários ainda sou eu, todo mês. Ainda escrevendo de azul o que era para ser vermelho e de preto, o que era para ser azul e, de vermelho, o que era para ser azul e preto. E já que, no fundo, sempre foi e continuará sendo, para onde apontam os teus seios, que eu cego seguirei.

(Gu)

Um comentário:

Danilo disse...

Um final lindo! "eu tenho a poesia; e a tristeza, portanto, roubo-a inteira dos teus olhos e não reparto", inesquecível! Bravo!