quarta-feira, 19 de novembro de 2008

madrinha

Acabou o livro, levantou-se, ainda lembrou-se de confirmar o nome da autora daquele romance tão perturbador: Ana Paula. Algo de místico rondava aquele nome. Ana Paula, repetiu como se confirmasse o nome da filha. Mas sem sobrenome carecia de identidade, não era um Joyce, ou um Goethe, tampouco um Shakespeare. Mas lembrou-se imediatamente de um outro nome. Homero. Onde tudo começa e pra onde tudo volta. Pareceu mesmo, aquela sua heroína, um pouco com Odisseu. Sua busca visava um outro lar, mas a mesma esposa. Talvez num mundo possível e tão verossímil quanto o de Odisseu.
Lembrou-se de ir a padaria comprar o pão para o café do dia que amanhecia. Saberia do gosto de mãe do macarrão de domingo. Nos elementos que se dispunham sobre os armários e móveis, alguns porta retratos, souvenires, e o que devia ser um artefato feminino sobrando ali por razão desconhecida, sonhavam uma áurea doce e de poderes desconhecidos até então. Tão poucas vezes soubera o valor desse amor de família que por vezes lhe pareceu um amor obrigado. E tanto quanto estas vezes teria lido livro tão perturbador como o de Ana Paula. (Abriu o portão) percebeu tal pensamento e esqueceu-se que havia esquecido o livro aberto. Mas fora proposital. Sentia conhecer aquele livro, sentia sonhá-lo, o sentia sonhar.
As pessoas logo começariam a chegar. Não sabia ao certo onde haviam ido. A casa foi tomada por ele por desculpa de uma noite, mas o tomou com sorriso que o recebeu. Dormira e agora buscava o pão para si próprio, mas sabia que iria encontrar companhia, talvez logo quando chegasse com o pão, que parecia uma tarefa fácil, mas lenta como a mãe que olha o filho dormir. Cada detalhe lhe lambia a retina, cada flor a se abrir nas árvores era ouvida. Se não fosse já um pouco tarde poderia dedicar-se mais a essa sensação de leveza de valsa cotidiana tão pouco vivida.
Passou sem dar ainda atenção ao cão que lhe lambia a mão livre da sacola. Preparou o café que não poderia deixar de ser doce. Comeu e esperou que chegassem. Chegaram. Olharam. Cozinharam. Conversaram. E era tudo tão bom. Tudo tão doce. Como era doce Penélope. Em cada olhar parecia caber um amor. Um amor só possível quando a mágoa toca o coração de cada um. Com alguma exceção na irmã mais nova e na afilhada. No beijo. Nas palavras enroladas da criança que aponta e que se sabe amada pra um sorriso de agradecer luzir o dia e arrebentar com um coraçãozinho já em fio.
Ela talvez não tivesse o direito de fazer assim. Mas ela fez e pronto. Ele agora espera sem saber se o fazia em vão. Mas por algum motivo, sem aquilo ele não teria isto. A criança ainda o olhava e tinha vergonha de falar francês. Mas a madrinha sempre pronta a ajudar aliviava a pressão e soltava uma gargalhada que assustava. Chegava mesmo a abalar a estrutura da casa, pensou ter ouvido, inclusive, uma rachadura fazendo-se na parede, como ouvira antes a flor, devido àquela gargalhada. E pensou: será que talvez não fora pelo olhar dessa gargalhada que as flores expunham-se pelas ruas? Ou antes teria sido apenas a inveja da mãe natureza que precisou criar sete maravilhas para descobrir que não superaria a criação do pai, pois a oitava saiu exatamente como a madrinha, que não era, mas tem todo o direito de ser, fada.

(biel)

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