quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Excerto de relatório de estágio: Novembro

DA PROFESSORA:

Certa feita, fraquejei e tive de ser um ser humano por um dia. Vocês sabem a que conseqüências isso pode levar... O que vem de patadas, de coices, de garras, não se escreve. Eu sei que é piegas; sem meias palavras: pieguíssimo, escrever isso de não se poder ser humano. E, é claro, nem é verdade verdadeira, pois que as patadas, os coices e as garras também são dos humanos. Mas sei lá.
Bom, o que eu sei é que fraquejei, cheguei na escola, a professora perguntou como eu estava e eu respondi que “mal humorado”. Esse é o tipo de duas palavras que, com minha entonação, naquele momento, para aquela pessoa, chamaríamos grosseria. Eu tinha mil outras maneiras de dizer aquilo pra Diane, mais de acordo com o léxico que estabelecemos para com-versar, inclusive mais sinceras, mas disse do jeito que disse. E assim começou o desmoronamento.
As crianças gostaram. Estava tão feroz comigo e transferi tão bem minha fúria pra eles que todos ficaram quietinhos, como se não estivessem mais abandonados numa escola tão grande e tão fora de casa.
As crianças saíram, ficamos só eu e a Diane. Confessei que precisava de carinho. Aí desmontou o homem sempre em montaria e armadura, de cavalo e moinho de vento, de espada e escudo, arcaico, que defendia a Diane das injustiças da coordenadora e da diretora, que enfrentava com poeminhas circunstanciais, bielotruffas, chaveirinhos, perfumes, paciência, carinho e bom humor a falta de carro, de marido, de amor, de coragem, de força (sempre provisórias) da Diane. Ela não esperava. Respondeu em quatro tempos:
- pôs a mão na minha cabeça (gesto mais erótico dela, que teme os corpos como ninguém - a ponto de regular o rosto pro beijo de cumprimento).
- perguntou: “O que eu vou fazer de você, Gustavo? Jogar no lixo?”.
Vendo minha expressão de “Porra, você tá bem louca?”, ela tentou pela terceira vez:
- Vou jogar água em você!
Por fim, engatou sua última tentativa:
- Vou te por pra dormir.

Posso dizer que não esperava, dessa maneira, nenhuma dos momentos. Mas esta resposta encerra um carinho que não tinha conhecido antes. Desde o primeiro momento, tentando aproximar seu corpo (tão sabidamente desejado) do meu, passando pela rejeição absoluta, pela vontade de me acordar - literalmente - para a vida, até terminar no gesto materno de me pôr pra dormir, reconhecendo que a vida não tem muito jeito mesmo.
Tudo isso, de improviso, foi muito diferente das patadas, coices etc etc em estado puro a que estamos acostumados a receber depois de cometer a perigosíssima frase: “preciso de carinho”. Tudo isso me deu a alegria que todo homem pode querer, que é a de poder tirar a montaria. De noite.

(Gu)

2 comentários:

Danilo disse...

Já falei que adoro seus relatórios de estágio?

Anônimo disse...

Bonito. Eu gosto!...

O conteúdo, existe muita sinceridade, muita transparência. De uma simplicidade não meticulosa.

A forma, é um elixir, um feitiço, uma bebida. Uma poção que não exclui os cuidados da minúcia.