quinta-feira, 30 de outubro de 2008

da rua

Trabalhava. Não sabia mais da fome. Não tinha tempo de ir pra casa numa manhã, quanto mais de madrugada. Sabia a escuridão, mas não podia adormecer. Jamais. Da última vez levaram-me os pedaços de papelão. Se eu pego... Nascera ainda no caminho e só fora registrado com 76 anos. Ponto alto de sua vida. Mas na fronteira não é lugar bom de nascer. De morrer se vê que é fácil. Mas de viver é ainda muito mais difícil.
Caíra numa cidade estranha que não lhe via o rosto. Eram assim mesmo, cegos. Não cabiam em si e entupiam-se de coca-cola nos almoços de domingo. Uma vez achou dinheiro e resolveu vou ver o que tem de bom nesse troço preto. Tomara de um gole. Há uma semana sem comer e o dinheiro gasto em coca-cola. Colou-lhe o estômago às avessas, sentiu o ácido vibrar-lhe nas entranhas. Mas superou.
Sempre se superam as dores, os açoites dos guardas noturnos, os chutes dos playboys, uma queimadura que lhe corrompera a estética da perna que julgava bonita pra chutar uma bola, os olhares asquerosos das moças. Bom, esses doíam mais. Era vaidoso. Tinha um caco de espelho que não largava mesmo cortando-se com ele durante alguma madrugada mais fria ao encolher-se descuidado sob um banco de alguma praça com um guarda distraído. E com o auxilio do refletor de seus olhos ainda claros atrás da escuridão do encardido do rosto e do fedor de carniça que o habitava, sempre penteava o cabelo com um pente quase sem dentes.
Era esperto, não falava porque não tinha aprendido. Não sabia nem pedir socorro. Quando queimou-se fora levado ao hospital por bons samaritanos da manhã que o olharam e se eu o levo agora meu almoço será mais agradável, não pode dizer aos médicos nem a polícia que seus agressores estavam no mesmo corredor ao lado de uma empregada doméstica que apanhara muito pelo seu emprego, embora nada houvesse feito para pô-lo em perigo. Mas já enganara tantas vezes alguns exploradores noturnos. Uma vez, Ele tinha então 22 anos, um senhor se aproximara com um prato e oferecera-se para levá-lo pra sua casa e dar-lhe banho. Comeu tudo que tinha no marmitex e decidiu-se por acompanhar o sujeito. Talvez conseguisse mais comida. Adentrou aquela enorme casa e viu fotos do senhor com uma mulher, duas crianças apareciam numa foto e um bebê povoava as paredes. Ou eram dois? Não sei. São todos iguais. O senhor o conduzira ao banheiro tirou-lhe a roupa e o colocou dentro do box. Depois começou a despir-se também. Ao virar-se em direção ao senhor para tentar mostrar-lhe a sua fome que não fora satisfeita, deu com o senhor também faminto, sem roupa e erguido de uma forma que só adolescentes com prostitutas na primeira madrugada da vida. O senhor adentrou o box enquanto ele saiu pelo outro lado da porta que corria sobre trilhos instalados no chão. E ainda na saída, tivera tempo de pegar algumas roupas do cesto de roupas sujas e uma banana que recusara-se a comer num primeiro momento por lembrar-se do senhor e sua espada de cavaleiro noturno, mas mais que o nojo pode o jejum.
Envelhecera nas ruas e sem uma palavra. Com a dura cara de quem vem pra viver, mas nasce e vive na fronteira. Que é lugar de morrer.

(biel)

2 comentários:

Tavão disse...

"Tinha um caco de espelho que não largava mesmo cortando-se com ele durante alguma madrugada mais fria" - gostei disso! principalmente do "caco de espelho"!

Danilo disse...

"Uma vez achou dinheiro e resolveu vou ver o que tem de bom nesse troço preto"? "Mais que o nojo pode o jejum"?

Isso se chama estilo! Isso se chama talento! Estou muito admirado!