sábado, 10 de julho de 2010

Ordem e progresso

Chegara impaciente da audiência em que injustamente perdeu a causa, apenas por entrar em litígio contra alguém de família importante na insignificante cidadezinha, acreditava. Apressara-se em alcançar a arruinada rodoviária, para pegar o ônibus das 13hs – ainda cumpriria outra audiência à tarde em São Paulo. Chegara às 12h55m, comprara a passagem.
Às 13h15, o ônibus ainda não estacionara. Os minutos arrastavam-se e, consigo próprios, suores do gordo e preocupado advogado.
Somente às 13h45m, o ônibus chegou. Enfileiraram-se os passageiros.
Ele se dirigiu à sua poltrona, número vinte. Lá já estava sentado um jovem, ouvindo seu I pod. O advogado reclamou seu lugar. O jovem insolente, após certo esforço do advogado em se fazer ouvir, respondeu apenas com um gesto obsceno.
O advogado foi ter com o motorista, que adentrou em seu ônibus indignado com essa juventude. O jovem, para não ser transtornado também nos próximos funks, tratou de se encaminhar à poltrona comprada, número oito.
Lá estava sentado um velho árabe, que não sabia falar nem ler português e que adquirira a passagem com a ajuda de seu neto brasileiro. Depois de muito custo, e apenas por vulnerabilidade, não por entendimento, o árabe mudou-se para a poltrona cinco.
Lá se sentava uma moça, que não passava perto de poltrona par, porque dava azar. O velho árabe não se importaria em sentar-se em qualquer outra poltrona, porém o quiprocó se fazia tamanho que o motorista fez questão de que tudo findasse em ordem. Alguns lúcidos argumentos de um cientista convenceram provisoriamente a moça de sua possível insensatez.
A moça mudou-se, curiosamente, para a poltrona seis, do cientista, que lá estava, simplesmente, porque sua poltrona já tinha sido ocupada por uma senhora e porque preferira não incomodá-la.
A senhora lá estava, porque sempre se sentava na poltrona dez. Como tudo, na vida, tem uma primeira vez, dizem, ela mudou-se para a poltrona dezessete. A jovem que ocupava este lugar, lá estava apenas porque se confundira e porque queria se aquecer ao sol, mas prontamente aceitou migrar para a poltrona ao lado. Ainda esta poltrona havia sido comprada pela senhora, pois era sempre acompanhada pelo marido, que morrera há doze anos, mas que haveria de apreciar ter seu lugar ao lado da inseparável e amada esposa.
Esta jovem foi, então, para a poltrona treze, ao sol enfim, onde se sentava um dos integrantes da dupla sertaneja da cidade. Foi difícil para todos desalojá-los, ambos, dos lugares por eles escolhidos, mas fazer o quê? Mazelas da justiça...
Seus corpos fortes foram agraciar as poltronas onze e doze. Justamente onde se sentava sua fã número 1, fundadora do primeiro fã-clube, com seu poodlezinho devidamente tosado e vestido com uma camisa oficial da dupla e com lacinhos frágeis. Nem foi preciso pedir que ela se mudasse; fosse preciso, talvez falhassem suas vozes poderosas. Ela e seu cãozinho, que secretamente temiam tal falha, rápido foram para as poltronas três e quatro.
Lá estava um peão esparramado por ambas poltronas. Comprara duas, para que não fosse incomodado por nenhum outro passageiro. Foi incomodado, porque não comprara precisamente aquelas duas. Ele e suas botas imponentes trotaram, pois, para as poltronas quinze e dezesseis.
Na poltrona dezesseis, sentava-se a bela loura das curvas estonteantes e de decote generoso. O peão mal se importou em que ela se sentasse lá. A loura também se mostrou agradada com a presença do peão, inclinando-se para ajeitar o cinto de segurança dele. O motorista, mais uma vez, não gostou da história, já que a moça só poderia estar em poltrona errada. Ambos fizeram pouco caso. Até que o marido halterofilista desta loura saiu do banheiro, avistou o assanhamento e deu uma surra no peão como na esposa.
Quando tinha ido comprar passagem, o halterofilista já não encontrara duas passagens juntas: portanto, marido e esposa desavergonhada sentaram-se em lugares separados. Estavam em posse das passagens sete, ao lado do jovem insolente, e nove, ao lado do cientista. O halterofilista ponderou prudentemente que era melhor ele se sentar ao lado do jovem insolente e a mulher, ao lado do hábil cientista.
Na poltrona sete, sentava-se uma discreta mãe com um filho de colo que não parava de vomitar. Por esta boa razão, não pretendia ela mudar de lugar. O motorista, entretanto, não os deixou escapar, averiguou suas passagens. Já esquecido do atraso que se fazia notável, fez questão de chamar alguém da limpeza e efetuar a mudança. Mãe e filho mudaram-se para a poltrona dezenove, onde o menino vomitaria no ordeiro e justo advogado.
Na poltrona nove, estava um maluco varrido que pedira a passagem quatorze, porque pensava poder garimpar quartzo, otimizando o tempo da viagem. Quando do convencimento árduo de que não estava na poltrona que tanto pedira, dirigiu-se ávido à sua poltrona de direito.
Lá se sentava, entretanto, para nosso pasmo, outro passageiro com a poltrona catorze. O aturdido motorista mandou chamar a vendedora. Ela estava inflexivelmente certa de que catorze e quatorze eram dois números distintos, pois eram duas palavras distintas. Muito foi o esforço filológico do motorista em elucidar que não se tratava de duas palavras distintas mas de variações de uma só palavra. A vendedora não se convenceu, decepcionou-se profundamente com os ônibus de sua empresa, que julgara tão séria antes, e decidiu redigir uma petição ao dono, exigindo uma poltrona para o número catorze e outra, para o número quatorze.
O motorista, promovendo um debate democrático e aberto com seus passageiros, acabou sentenciando que o maluco se sentasse na poltrona catorze e que o outro, na poltrona nove.
Para desilusão de todos que, agora, esperavam iniciar viagem, finalmente, chegou o atrasado passageiro da poltrona nove. O motorista foi investigar as passagens da poltrona dois e da um, as únicas até então sem problemas. O elegante e taciturno passageiro da poltrona dois sentava-se na poltrona correta, e reputava a perda de tanto tempo para começar uma viagem assim como, apesar de ocupar a poltrona correta e apesar de manter a paciência, a suspeita de ilegitimidade um abuso exorbitante, mas preferiu nada falar, para não perder ainda mais tempo.
O passageiro da poltrona um, descobriu-se logo, era, na verdade, o motorista, que bebera um pouco mais, no almoço, e que pedira a seu primo dirigir por ele. O primo, aquele que parecia tanto o motorista, enterrou a mão no bolso e encontrou a passagem número um. Porém, gentilmente, cedeu-a ao passageiro atrasado da poltrona nove e foi buscar passagem para o próximo ônibus.
Gentilezas, às vezes, poupam vidas, pois o ônibus tropeçou em um dos inumeráveis buracos da estradinha e desabou com todos seus passageiros, deslocando-os, pela última vez, de seus lugares corretos e justos.

(Gu)

3 comentários:

biel madeira disse...

por isso q eu tenho von tade de me deletar depois de te ler!

Anônimo disse...

ai gu, só vc pra me dar esse tipo de prazer, seu texto é um tesão

Jennoca disse...

Sorrisinho com maldade, desse lado que lê. O Gu sempre me prende nas palavras. Ou é sorriso com maldade ou com uma bondade boa demais.